São Paulo, quinta-feira, 3 de julho de 1997
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Prato especial

MOACYR SCLIAR

Quando a notícia chegou aos canibais -os últimos remanescentes de uma tribo que vivia no meio da floresta tropical-, a primeira reação foi de surpresa. Simplesmente recusaram-se a acreditar. Tão perplexos ficaram, que o chefe resolveu convocar uma assembléia extraordinária, para discutirem o tema e chegarem, se possível, a uma conclusão.
Reunida a assembléia, um dos canibais, que era uma espécie de relações-públicas do grupo e que, portanto, estava informado de tudo o que se passava no mundo exterior, fez um relato do ocorrido. Entre os civilizados, contou ele, existe um esporte chamado boxe, que consiste em colocar dois homens num lugar chamado ringue, onde eles trocam golpes até que um deles caia no chão. Aí um terceiro homem, chamado juiz, decide se a luta pode continuar. Se não pode, aquele que ficou de pé é proclamado vencedor e recebe milhões de dólares.
Os canibais estavam horrorizados. Dois homens trocando golpes violentos para que outros se divertissem? E sendo pagos regiamente por isso? Chamavam aquilo de civilização?
O relator continuou, dizendo que uma novidade tinha surgido nesse esporte, novidade esta que era exatamente o objeto da reunião. Numa importante luta, um dos contendores tinha mordido a orelha do adversário. E a questão era essa: como explicar tal conduta?
Os canibais estavam cada vez mais perplexos. Orelha? Por que orelha? Claro, trata-se de uma parte da anatomia facilmente acessível. Mas daí a mordê-la vai uma distância considerável. E um mau gosto atroz. Todos ali estavam de acordo que dificilmente uma parte do corpo seria menos própria para o consumo. Orelha é uma coisa dura, cartilaginosa. E pequena, ainda por cima; em termos nutricionais, rendimento praticamente nulo. Por que a orelha, então? Será que os civilizados tinham descoberto uma maneira de prepará-la de modo a torná-la palatável -uma insólita delicatesse?
Mas a grande surpresa ainda estava por vir. O relator tinha mais uma informação: na verdade, o boxeador tinha apenas mordido a orelha do adversário. Tanto que o fragmento havia sido encontrado após a luta, completamente inaproveitado.
A revelação provocou primeiro indignação -que desperdício!- e depois risos de deboche. Se em algum momento os canibais julgaram que sairiam da reunião tendo aprendido como transformar a orelha em prato especial, se haviam enganado: os chamados civilizados continuavam os tolos de sempre. Como disse o ancião do grupo: depois que aquele grande artista deles, o Van Gogh, cortou a orelha para dar de presente à namorada, descobri que, em matéria de pavilhão auricular, os civilizados são capazes de qualquer coisa.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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