São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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A comédia brasileira

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

Aos poucos, de baixo para cima, sem que ninguém notasse, formava-se uma mitologia teatral brasileira, centrada já na Bahia e originária da revista

Continuação da pág. 5-7

Abaixo da opereta, na hierarquia ideal dos gêneros de teatro musicado, situava-se a revista. Também procedente da França, onde mergulhava raízes no século 18, cresceu no Brasil nos dois últimos decênios do século 19, quando foi praticada por autores teatrais de primeira linha, constituindo-se na forma mais rica e mais rentável de teatro comercial. Sousa Bastos, mestre da revista portuguesa, que frequentemente atravessava o Atlântico, assim a definiu em 1908:
"É a classificação que se dá a certo gênero de peça, em que o autor critica os costumes de um país ou de uma localidade, ou então faz passar à vista do espectador todos os principais acontecimentos do ano findo: revoluções (sic), grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários, espetáculos, crimes, desgraças, divertimentos etc. Nas peças deste gênero todas as coisas, ainda as mais abstratas, são personificadas de maneira a facilitar apresentá-las em cena. As revistas, que em pouco podem satisfazer pelo lado literário, dependem principalmente, para terem agrado, da ligeireza, da alegria, do muito movimento, do espírito, com que forem escritas, além de 'couplets' engraçados e boa encenação (...). Houve época em que, nas revistas, o escândalo predominava e eram festejadíssimas as caricaturas de personagens importantes da política (...). Pois, sinceramente, era isso preferível à pornografia de que quase todas as revistas hoje estão recheadas" (8).
Não tendo enredo, ou não o necessitando, a revista adquiria a sua escassa unidade através da figura do "compère" (palavra francesa usada no jargão teatral da língua portuguesa). Essa personagem, em parte fictícia, como as outras, mas relacionada de perto com as características pessoais do ator incumbido de interpretá-la, unia os diferentes quadros que compunham o espetáculo, ora cômicos, ora de canto e dança, quando não das três coisas juntas. Ele, o "compère", era de certo modo o mestre-de-cerimônias, não deixando, pela sua forte ação de presença, pela empatia com o público, que a continuidade da representação se desfizesse totalmente em números isolados. O resto do elenco, os cômicos, em número de três ou quatro, e as cantoras, ainda frequentemente francesas, a começar por Rosa Villiot (ela nacionalizara o prenome), intervinham em criações individuais, nesta ou naquela cena. O coro, obrigatório nas boas revistas, acompanhava de princípio a fim a ação, cantando e dançando.
A música também se fragmentava, não ambicionando ter a unidade e originalidade da opereta. Um maestro de atuação local, Gomes Cardim (português radicado no Brasil) ou Assis Pacheco, Nicolino Milano ou Paulino Sacramento, entre outros, dirigia a pequena orquestra e se responsabilizava pelo arranjo musical, que, além de contar com a inspiração própria, podia recorrer livremente ao estoque de música ligeira armazenado durante anos pela opereta européia. Ouvia-se, numa revista, desde canções sertanejas tiradas do repertório popular até páginas conhecidíssimas de Suppé e Offenbach.
A revista tendia ao grande espetáculo, retribuindo o que recebia na bilheteria sob a forma de um certo esplendor visual: cenários variados, mutações à vista, belos figurinos (muitos desenhados por Aluísio Azevedo nas revistas do seu irmão Artur). Esse aparato cênico culminava nas apoteoses de fim de peça. O espetáculo, para se despedir do público, fazendo-o sair do teatro com uma carga renovada de energia, mudava subitamente de tom, passava do cômico ao sério, do galhofeiro ao solene, do satírico ao comemorativo e patriótico (sentimentos de encomenda, em obediência às regras do gênero). Artur Azevedo deu o seguinte desfecho a "O Tribofe", revista encenada em 1892:
"GOUVEIA: E o 'couplet' final?
QUINOTA: As revistas do ano nunca terminam com um 'couplet', mas com uma apoteose. (Vindo ao proscênio) Minhas senhoras e meus senhores, o autor quis manifestar o seu respeito por dois brasileiros ilustres falecidos em 1891... (apontando para o fundo) Benjamin Constant e dom Pedro de Alcântara! (mutação). (Apoteose) (9).
A palavra final ficava assim a cargo dos cenógrafos e do maquinista-chefe, cujo nome, por sua importância no bom andamento da representação, figurava às vezes no programa. A eles cabia movimentar com fantasia e competência técnica a complexa maquinaria que caracterizava o palco no século 19, permitindo-lhe simular viagens e naufrágios em alto-mar, antes que o cinema viesse a suplantar o teatro em riqueza e veracidade dos detalhes materiais.
Por esse lado, a revista confinava com a mágica (derivada da "féerie" francesa) o terceiro e o mais baixo degrau do teatro musicado. Sousa Bastos desta maneira a identificou: "É uma peça de grande espetáculo cuja ação é sempre fantástica ou sobrenatural e onde predomina o maravilhoso (...). Infelizmente o gênero, patrocinado pelos deslumbramentos das visualidades e riqueza dos acessórios, cai em mãos inábeis quase sempre; e por isso é vulgar tais peças aparecerem muitas vezes cheias de inépcias, grosserias e infantilidades tolas" (10).
Não se compreende bem o final do século do teatro brasileiro, o interesse popular pela revista e pela mágica, sem se levar em conta a colaboração de dois cenógrafos italianos que se fixaram no Brasil, Gaetano Carrancini e Oreste Coliva. Sobre o primeiro escreveu Artur Azevedo:
"É um extraordinário artista o Carrancini! Quando ele aqui apareceu, em 1885, com o 'Gênio do Fogo', eu supus que a sua opulenta fantasia ficasse completamente esgotada depois de imaginados e concluídos os cenários daquela mágica. Entretanto, durante nove anos ele tem pintado sem interrupção para o nosso teatro, e, que eu saiba, nunca se repetiu! O seu forte são justamente os cenários da mágica -os palácios encantados, deslumbrantes de ouro, estofos e pedrarias, de uma arquitetura revolucionária, só dele-, as praças exóticas de cidades imaginárias -as cavernas tenebrosas-, os bosques misteriosos -as grutas infernais etc. As suas apoteoses nunca deixam de apresentar alguma novidade, e ele as tem pintado às centenas. Aí o cenário é sempre maquinado e o cenógrafo reclama a colaboração subalterna do carpinteiro; há flores que se transformam em estrelas, colunas que giram, águas que jorram, grupos maravilhosamente combinados, harmonia de cores, efeitos de projeções luminosas etc." (11).
Artur Azevedo, o maior entre os revistógrafos do período, aceitava a popularização do teatro efetuada pela revista, mas guardando certa distância, não se igualando jamais ao popularesco. Quando podia, enxertava em seus espetáculos um tema literário, julgado mais elevado, chamava à cena a Fantasia, empreendia uma Viagem ao Parnaso, nem sempre com bons resultados, porque se abria uma espécie de vazio entre forma e conteúdo, uma contradizendo a outra. Na boca das personagens ele empregava o vocabulário e a sintaxe vigentes nas casas e nas ruas, cheia de brasileirismos, regionalismos, mas sempre como citação, de maneira a não comprometer jamais a sua posição de escritor erudito e gramaticalmente correto. Quer dizer que ele não traía o pacto estabelecido tacitamente pelos intelectuais de então, distinguindo com nitidez entre a realidade deles, de um lado, e, de outro, o Brasil real e grosseiro. Reproduzia-se no romance ou na comédia o que se ouvia, mas sem confundir planos, sem buscar matéria e inspiração no popular, como a literatura fará a partir do modernismo.
Serviram a Artur Azevedo, no entanto, para chegar ao grosso público, algumas qualidades requeridas pela revista: a ausência de pose, de pedantismo; o gosto pelas idéias e expressões simples; o dom da caricatura, da graça fácil e espontânea; a habilidade no jogo de palavras, no uso do trocadilho; o interesse jornalístico pelos modismos, pelo que estava acontecendo no Brasil e mais ainda na cidade do Rio de Janeiro (12) e, como última virtude, suprema numa época que cultivava e prezava o verso bem-feito, a pasmosa facilidade em metrificar, sem esforço aparente, tudo o que lhe passava pela cabeça, inclusive nomes próprios excêntricos e vocábulos estrangeiros. Para tudo ele descobria uma rima inesperada e cabível -portanto, no contexto, engraçada.
No palco quem dava vida e consistência aos tipos esquemáticos da revista, bem como os da opereta e da mágica, eram os atores cômicos, especialistas da comunicação imediata com a platéia. Cantavam com a pouco voz que tinham, sem aperfeiçoamento musical, mas sabiam extrair do texto a salacidade, o duplo sentido sexual que os autores haviam disseminado no texto, para que explodissem na hora certa em cena, graças aos olhares maliciosos, aos gestos e inflexões equívocos dos intérpretes. Nada era dito com todas as letras, tudo ficava subentendido.
O Vasques, já citado, revelou-se o primeiro entre eles, em ordem cronológica e ao que parece também em ordem de mérito, por seu poder de criação, já quase de autor. Entre os que se seguiram, dois, dos mais celebrados, vieram meninos de terras portuguesas, fazendo-se atores nas companhias secundárias -os mambembes-, que percorriam o interior do Brasil. Brandão (José Augusto Soares Brandão, 1845-1921), por si mesmo cognominado O Popularíssimo, foi assim descrito: "Faz umas coisas extraordinárias, mas que ao seu feitio não ficam mal. Enterra o chapéu até as orelhas, deixa cair a calça, deita para fora a fralda da camisa, chega a ver-se-lhe a carne, esbugalha os olhos, escancara a boca, ajoelha, dá pernadas, grita, gesticula exageradamente; mas tudo que era insuportável noutro, nele faz-nos rir a valer. De mais a mais improvisa, e por vezes com felicidade" (13).
João Machado Pinheiro e Costa (1850-1920), conhecido como Machado Careca, sofreu por parte do mesmo Sousa Bastos, autor e empresário tão ativo no Brasil quanto em seu nativo Portugal, algumas restrições, dirigidas menos ao ator que à falta de compostura que começava a marcar a comicidade brasileira: "O que é forçoso confessar é que, passada certa época, Machado deixou-se arrastar por uma onda de loucura que invadiu os teatros do Rio de Janeiro. Em quase todas as casas de espetáculo o gênero predileto era a revista levada ao extremo da libertinagem e a 'pochade' desbragada. Os artistas transformaram-se na sua maioria em 'clowns' e bailarinos. Machado, sem de todo perder o mérito que lhe reconhecem, perdeu muito do seu valor por transigir demais com as platéias ávidas de cambalhotas e ditos mais do que equívocos" (14).
Entre os nascidos no Brasil não se poderiam esquecer pelo menos dois cômicos: Xisto Bahia (1841-94), compositor e cantor de lundus, "extraordinário nos papéis em que imitava roceiros, capadócios e outros tipos populares do Brasil"; e João Colás (1856-1920), filho de um maestro de música ligeira, "festejadíssimo na canção 'Matuto do Piauí', que realmente ele fazia a primor" (15).
No naipe feminino local, reconhecidamente mais fraco, o destaque iria para Cinira Polônio (1862-1938), que estudara música na Europa e cantava com malícia e finura cançonetas francesas, além de protagonizar operetas, e Aurélia Delorme (1866-1921), atriz medíocre, mas que merece menção por ter sido a inventora, ou uma das precursoras, do chamado teatro rebolado. Sousa Bastos, que a viu no começo da carreira, assinalou em que consistia o seu específico talento: "Dava umas tais voltas, fazia tais requebros, que a platéia levantava-se entusiasmada e cobria-a de flores. Era o delírio da libertinagem no teatro (...). Nunca mais teve tamanhas ovações porque nunca mais teve papel em que pudesse ir tão despida, em que tanto pudesse rebolar o que a natureza lhe pôs do outro lado" (16). Mas a rainha da revista foi, sem dúvida, Pepa Ruiz (1859-1923), nascida na Espanha, feita atriz em Portugal, mas também brasileira por ter se deixado ficar por aqui. Num só espetáculo ela criou 18 personagens diferentes, inclusive um número, "O Mungunzá", em que aparecia vestida de baiana. Aos poucos, de baixo para cima, sem que ninguém notasse, formava-se uma mitologia teatral inequivocamente brasileira, centrada já na Bahia e originária da revista. O exemplo mais claro disso foi a lenta e difícil ascensão do maxixe, que se constituiu em gênero musical, antecessor do samba, a partir de uma maneira de dançar, mais requebrada, francamente erótica, não aceitável a não ser pelas camadas populares (17).
O teatro musicado, em suas várias encarnações, significou um aumento ponderável de público, com benefícios econômicos para intérpretes e autores, e o decréscimo de aspirações literárias. Após os sonhos despertados pelo romantismo, quando os escritores acharam que poderiam dizer alguma coisa de importante sobre a liberdade e a nacionalidade, e após o realismo, que examinou moralmente os fundamentos da família burguesa, a opereta, a revista e a mágica surgiam como nítido anticlímax. Até o amor descera a níveis mais corpóreos e menos idílicos.
Essa impressão não é só da posteridade. Palavras de atores como Vasques e Xisto Bahia, de autores como Artur Azevedo, deixam transparecer sem margem de dúvida a mesma decepção perante o fato de que o teatro se contentara com limites afinal de contas modestos, não desejando ultrapassar as fronteiras de boa diversão, destinada a pessoas não particularmente interessadas seja na literatura seja na música.

Notas:
1. Machado de Assis, "Obras", SP, Jackson, 1950, vol. 26, págs. 115-6, 430.
2. Idem, ibidem, 1951, vol. 21, pág. 39.
3. Procópio Ferreira, "O Ator Vasques", SP, Oficinas José Magalhães, 1939.
4. Roberto Seidl, "Artur Azevedo", RJ, ABC, 1937, pág. 165.
5. Cf. Eduardo Vitorino, "Atores e Atrizes", RJ, "A Noite", 1937, pág. 155.
6. Gryphus (José Alves de Visconti Coaracy), "Galeria Teatral", RJ, Moreira, Maximino e Cia., 1884, pág. 181.
7. Machado de Assis, "Obras", vol. 26, pág. 366.
8. Sousa Bastos, "Dicionário do Teatro Português", Lisboa, Libânio da Silva, 1908, pág. 128.
9. Artur Azevedo, "O Tribofe", RJ, Nova Fronteira/Casa de Ruy Barbosa, 1986, pág. 179.
10. Sousa Bastos, "Dicionário do Teatro Português", pág. 89.
11. Artur Azevedo, "O Tribofe", págs. 267-8.
12. Cf. F. Sussekind, "As Revistas do Ano e a Imagem do Rio de Janeiro", RJ, Nova Fronteira/Casa de Ruy Barbosa, 1986. Nas páginas 173-276 acha-se uma cuidadosa cronologia das 19 revistas escritas por Artur Azevedo, entre 1877 e 1907, feita pela autora, com a colaboração de Rachel T. Valença.
13. Sousa Bastos, "Carteira do Artista", Lisboa, Bertrand, 1898, pág. 230.
14. Idem, pág. 290.
15. Idem, págs. 289, 627.
16. Idem, págs. 628-9.
17. Cf. J. Efegê, "Maxixe - A Dança Excomungada", RJ, Conquista, 1974; J.R. Tinhorão, "Pequena História da Música Popular", Petrópolis, Vozes, 1974.

O texto acima é a primeira parte de um ensaio maior publicado no livro "Seres, Coisas, Lugares", a ser lançado pela Companhia das Letras.

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