São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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FRATERNIDADE ou os perigos da história etnográfica

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os perigos da história etnográfica são óbvios para qualquer um que se arrisque às cegas. Você acompanha seu antropólogo num argumento, faz uma curva e, de repente, colide com coisas estranhas: príncipes esbanjando poder na arte de governar; chefes fazendo diplomacia em torno de carneiros; e sábios esquadrinhando uma visão de mundo no fundo composta de elefantes montados sobre tartarugas, tartarugas sobre elefantes, depois tartarugas "até não acabar mais" (1). É estonteante, e também perigoso.
Falo por experiência, tendo sido denunciado por meus colegas historiadores de vira-casaca, que passou para a antropologia e sucumbiu aos "pericoli del geertzismo" (os perigos do geertzismo) (2). Quando se inicia uma viagem em tal companhia, não há caminho de volta. Daí o presente ensaio, que eu apresento como uma advertência aos companheiros de viagem; pois foi escrito num estado de geertzismo impenitente, e revela algo sobre os perigos da virada etnográfica. Desta vez eu me vi diante de uma visão de mundo que assomou das páginas da autobiografia de um trabalhador do século 18, e não gostei do que vi.
"Journal de Ma Vie" (Diário de Minha Vida), de Jacques-Louis Ménétra, um vidraceiro parisiense, é um documento extraordinário, em parte ficção, em parte fantasia, e em alguma parte (mas que proporção precisa?) um relato autêntico da vida de um artesão com o pé na estrada e nos quarteirões operários de Paris, entre 1738 e 1802 (3). Tais documentos são raros (4). Eles proporcionam lampejos sobre um território obscuro, conhecido na França como "história das mentalidades" ou o que os antropólogos descrevem como sistemas culturais. Mas eles não funcionam como janelas transparentes e o que revelam pode estar tão longe do alcance da experiência da maioria dos historiadores, a ponto de parecerem incompreensíveis.
No caso do "Journal" de Ménétra, a dificuldade não deriva da recusa do autor em distinguir fato de ficção. Qual texto -mesmo a "História dos Papas", de Ranke, mesmo "Bruxaria, Oráculos e Magia Entre os Azende", de Evans-Pritchard- não contém elementos pré-fabricados arrumados pela imaginação do narrador?
A dificuldade diz respeito a algo inteiramente de uma outra ordem, algo detestável e inesperado -a saber, o estupro. Para a maioria dos modernos, o estupro é um crime tão repulsivo que desafia a compreensão, apesar dos esforços de criminólogos, psicólogos e antropólogos para ver nele algum sentido (5). Para Ménétra era uma aventura, algo a respeito do que se gabar. Mais ainda: ele misturava a fanfarronice à troca, como se esperasse que seu leitor compartilhasse de uma anedota. E ainda mais estranho: ele associava estupro a uma noção de fraternidade.
Fraternidade -do tipo revolucionário francês, não a variedade universitária norte-americana de bebedores de cerveja- é em si mesma estranha (6). Para o historiador moderno que tenta decifrá-la de uma distância de 200 anos, ela pode parecer tão ridícula quanto repelente. Os abraços de peito cabeludo, o andar pomposo por aí, usando chapéus com laços e plumas, os juramentos ferozes pelo extermínio da tirania, as poses surpreendentemente clássicas -o bater nos peitos, flexionar músculos, agitar bandeiras e sacudir sabres-, tudo isso deixa um ar de ópera cômica tanto quanto de sexismo. Como podemos levar isso a sério? Contudo, se deixarmos de fazê-lo, poderemos nunca entender a fonte da energia que encaminhou a Revolução na direção da democracia.
Aquela energia era plebéia, uma "émotion populaire", como era conhecida pelas autoridades encarregadas do controle de motins sob o Antigo Regime. Ela mobilizou o povo comum e salvou a Revolução em cada momento crítico de 1789 a 1795. Para qualquer um que se preocupe com a causa plebéia, a fraternidade merece o seu lugar no coração da trindade de valores da Revolução. Mas, comparada com a liberdade e a igualdade, ela permanece misteriosa, como se fosse um poder escondido sob a superfície dos acontecimentos, e não sonhada tal como aquelas o são nas filosofias dos historiadores modernos. E se a energia da Revolução estivesse poluída em sua fonte?
O "Journal" de Ménétra se lê como um "roman-fleuve" primitivo. Foi escrito com um enredo bem formulado, mas mal soletrado, sem pontuação, sem parágrafos, capítulos de uma distinção clara entre fantasia e fato. Pode também ser lido como um exemplo supremo de bravata sexual masculina, pois Ménétra se representou como um don Juan da classe trabalhadora, pequeno no tamanho, mas "um Hércules em matéria de amor" (7); e ele organiza sua narrativa em torno de suas supostas seduções. O texto tem traços de Boccaccio e de romances sexuais populares do período (8); mas deriva sobretudo de uma tradição oral, a fábula sexual, que os homens contavam uns aos outros durante suas viagens pela França -enquanto vagabundeavam entre um trabalho e outro, no próprio local de trabalho, nas tavernas, na cama, pois frequentemente se hospedavam juntos, dois numa cama e às vezes vários no mesmo quarto das estalagens associadas com suas "compagnonages" (grêmios fraternais de jornaleiros; Ménétra pertencia à Compagnonage du Devoir). A camaradagem à mesa e os esquemas de passar a noite em grupo fornecem o contexto imediato a esta narração de uma história; as convenções de uma cultura artesanal compartilhada fornecem à história um quadro geral de referência.
Ménétra certamente conta uma boa história, e sua performance oral deve ter sido bem mais engenhosa do que a narrativa desajeitada de seu texto escrito. A certa altura, ele descreve o efeito de suas histórias sobre um nobre do interior, que o havia convidado e a um outro jornaleiro, para jantar num "château":
"Ele se diverte nos fazendo contar nossas escapadas e tudo que fizemos em nossas viagens através da França. Eu lhe conto uma ou duas. O senhor e sua mulher riem até que as lágrimas rolem por suas bochechas. Um padre que estava servindo de capelão para eles, mas que não tinha o ar hipócrita da maioria dos de seu tipo, ri até ficar prestes a partir-se ao meio, segurando seu lenço ou guardanapo em frente a sua boca; e a senhora da casa quase não pôde ouvir mais" (9).
Ménétra constrói sua narrativa reunindo essas "escapadas" ("fredaines"). Ao segui-lo em suas caçadas a saias através da França, o leitor moderno se surpreende sendo arrastado à piada; mas, em todos os pontos cruciais, o leitor ou a leitora (ele exatamente tanto quanto ela) deixa de perceber as piadas. Elas simplesmente não são engraçadas, porque se passam num universo mental que é impensável hoje. Considere este exemplo:
"Um domingo, indo ver o barão no Faubourg Saint-Antoine na companhia de meu amigo Gombeaut, chegamos até o Bois de Vincennes. Caminhando na direção dos arbustos, nos deparamos com um ninho de amor, um jovem e uma jovem fazendo aquilo. Eu lhe disse: 'Vamos lá, multipliquem-se'. Tendo sido acidentalmente interrompido por nós nesta atividade bastante humana, ele nos disse para irmos para o inferno. Com essas palavras, Gombeaut pegou da espada; e nós o fizemos arrepender-se da insolência, porque cada um de nós nos revezamos com a jovem coisa sem dar a ela a chance de se arrumar. O idiota não se atreveu a chegar perto. Nós zombamos dele, agradecendo à moça por ter sido tão bem comportada; e, quando nos havíamos afastado alguma distância, jogamos sua espada para trás; pois cada um de nós havia ficado de guarda, enquanto o outro fazia aquilo. Poucos dias antes, enquanto bebíamos juntos, dissemos um para o outro: 'Nós somos grandes amigos, mas devemos nos tornar irmãos'. Mas não tínhamos dinheiro suficiente. Então vendemos uma fivela de sapato de prata e fomos dividir uma mulher por uma noite. Então dissemos depois um ao outro: 'Agora estamos duplamente ligados, à maneira de família' " (10).
Para Ménétra, foi hilariante. Para o leitor moderno, parece um estupro grupal. Estupro grupal e fraternidade -não a que ocorre no campus universitário, nem o amor fraterno atribuído aos filadelfianos, nem qualquer tipo de sentimento adocicado sobre família de homens, mas vínculo masculino baseado na violação de uma mulher. Com que direito pode o historiador juntar duas categorias tão incompatíveis quanto fraternidade e estupro? Eu responderia, em primeiro lugar, que Foucault nos deu uma lição a respeito do impensável: ela envolve quebrar e penetrar um código cultural estranho, um que parece impenetrável precisamente porque junta coisas que nós mantemos separadas; suas categorias não são as nossas, e assim ele organiza a realidade de uma maneira diferente (11).
Em segundo lugar, eu responderia que o estupro no Bois de Vincennes não fora um incidente isolado. Adapta-se ao padrão geral das experiências narradas por Ménétra. Ele descreveu toda a sua vida como uma caçada ao "animal feminino" (12) e gabava-se de vários estupros, geralmente com uma veia humorística, como se considerasse que sua platéia fosse achá-los engraçados.
Quando vagabundeava com um amigo nas vizinhanças de Angers, Ménétra encontrou um jovem casal de camponeses fazendo amor. Seu amigo espantou o rapaz e Ménétra se apropriou da moça, "metade com consentimento, metade pela força" (13). Em Lyon, Ménétra se supriu de uma mulher surda e idosa: "Eu apressei as coisas e, para me fazer entender, tive de levantar minha voz e tomá-la de assalto. Então apaguei a luz e me servi" (14). Em Montpellier, ele notou que um dos jornaleiros no dormitório da "compagnonnage" estava viajando com sua amante disfarçada de homem:
"E notei que era mercadoria para homens... À noite ocupei seu lugar, meio pela força, meio por consentimento. No dia seguinte ela disse a seu amante o que lhe havia acontecido, mas, desde que éramos muitos dividindo o quarto, ele não sabia a qual de nós acusar. Então ele nos mandou embora a todos, e respondemos com tanta zombaria, que os dois foram forçados a se retirar. Todos os jornaleiros se reuniram para rir daquilo, e todos eles, inclusive a senhora ('la mére') da estalagem, disseram que só o parisiense poderia armar uma trapaça daquela" (15).
Essas "trapaças" -Ménétra usa uma série de termos relacionados: "tours", "niches", "fredaines" e "espiègleries"- frequentemente envolviam compartilhar mulheres. Os episódios mais engraçados, da perspectiva de Ménétra, aconteciam quando os trabalhadores pilhavam esposas e filhas de seus patrões. Em Bourg-en-Bresse, eles passaram mãe e filha juntas de uma cama para outra como se tivessem passando comida: "Perguntei a um burgundiano dormindo a meu lado se ele queria participar daquilo. Ele respondeu que eu havia esquentado muito aquilo" (16).
Sexualidade e comensalidade andavam juntas, pois a taverna era o contraponto do quarto de dormir. Da mesma forma que os jornaleiros partilhavam suas camas, eles selavam amizades e resolviam brigas, indo para certas tavernas e partilhando uma jarra de vinho ou um pardal assado e salada. Segundo a descrição de Ménétra, essas cerimônias marcavam importantes encontros pessoais. Por exemplo, após uma noite de bebedeira numa taverna com seu amigo Segrestier e a mulher deste, Ménétra se viu trancado do lado de fora de seu quarto e passou a noite na cama deles. Na manhã seguinte, "ele me disse para vir beber um vinho branco com ele, porque tinha algo em seu coração" (17). Por que, Segrestier perguntou após ter vertido o vinho na taverna, sua mulher fora deitar-se ao seu lado na cama e acordara ao lado de Ménétra?
A conversa de Ménétra salvou aquela amizade e consolidou outras, em particular sua relação com um outro caçador de mulheres de nome Gaillard, que vivia vendendo relógios nas ruas de Paris. Uma bem vestida cliente de Gaillard havia pago parte em dinheiro e parte com uma nota promissória, "com a condição de que eles comeriam um pardal" -quer dizer, selariam a transação jantando juntos numa taverna (18). A mulher era madame Saint-Louis, a "maman" de um notório bordel na rue Beaurepaire. Uma coisa leva a outra, e logo os dois amigos formavam pares com madame e uma de suas garotas, primeiro na mesa, depois na cama: "Ela tinha uma cama no quarto; e lá estávamos nós, transando juntos" (19).

Continua à pág. 5-10

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