São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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Os pitorescos personagens de Ballester

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase ao final de "A Ilha dos Jacintos Cortados" Chateaubriand -o escritor francês, não o nosso Chatô- afirma: "A história é feita pelos heróis, e os heróis nada mais são, na verdade, que nome e rosto, palavra e retrato". Ao que lhe indaga a personagem Flaviarosa: "E, sendo escritor, isso vos aflige?". Chateaubriand não responde, mas a Gonzalo Torrente Ballester, o autor deste belo romance, não aflige fabricar heróis imaginários, nem os pitorescos personagens que lhe fazem companhia: pelo contrário, ele o faz com mão de mestre.
A narrativa se desenvolve em dois planos. O primeiro é representado por uma carta escrita por um professor universitário, um estrangeiro que leciona na Costa Leste dos Estados Unidos. Elemento autobiográfico? Ballester, nascido em 1910, é professor de literatura e crítico literário, autor de uma numerosa obra que inclui ensaio, teatro, ficção e história. À época da ditadura franquista apoiou uma greve, o que lhe custou caro: foi proibido de publicar. A convite da Universidade de Albany foi lecionar nos Estados Unidos, onde permaneceu muitos anos.
A carta, que introduz a dupla história, é dirigida a uma jovem com quem o narrador passa vários dias em uma cabana e por quem nutre uma paixão platônica. Ela se chama Ariadna. Na mitologia grega, este é o nome da princesa que dá a Teseu o fio que lhe permite sair do labirinto depois de matar o Minotauro. O livro está cheio de alusões como estas, e de cultas citações (Pessoa está ali, criando um problema ao competente tradutor Ari Roitman, que se vê forçado a traduzir o poeta português do espanhol). Refletem a enciclopédica erudição do autor e dirigem a obra para um público evidentemente selecionado. Mas a metáfora em questão é apropriada; a carta a Ariadna é o fio condutor da narrativa, usada pelo pobre professor como um artifício -à la scherazade- para captar a atenção da moça, apaixonada por outro professor, este de história, um homem que defende uma tese segundo a qual Napoleão não existiu.
O segundo plano da narrativa, muito mais complicado, tem como cenário uma ilha chamada La Gorgona (de novo a alusão mitológica), cuja base econômica é um grande estaleiro. A época é o final do século 18, e a Revolução Francesa é o fato histórico que polariza as atenções. Ballester tem predileção pela ficção histórica, como já se havia constatado em "O Rei Pasmado e a Rainha Nua" (publicado no Brasil pela Editora Rosa dos Ventos e transformado, por Imanol Uribe, no filme homônimo).
Aqui temos a mesma galeria de pitorescos personagens, a maioria deles pertencentes à aristocracia italiana que domina a ilha: Ascanio Aldrobandi, o governante, Flaviarosa della Croce, o general Galvano della Porta, o lascivo Nicolau, Agnesse Contarini, que teria sido amante de Byron. Aliás, numerosos personagens históricos da época (Metternich, Cagliostro, Mesmer) entram na trama, que envolve luta pelo poder e paixões clandestinas, tudo isso em meio a eruditos diálogos. É um grande mérito de Ballester, aliás, introduzir todos estes elementos sem tornar o romance chato; e ele o consegue sobretudo graças ao corrosivo humor e a brilhante ironia.
O ponto alto do livro é a cena em que os personagens, históricos e os outros, dedicam-se a produzir um líder que assumirá o vácuo de poder deixado pela revolução na França. O selecionado é um homem chamado Napollione Buonaparte, um desconhecido que representa "um monte de páginas em branco para genealogistas e cronistas". O que representa uma vitória do narrador sobre Claire; se este nega Napoleão, o rejeitado professor o inventará.
A história, disse Millor, é uma estória. O neologismo criado por Guimarães Rosa não pegou, mas se aplicaria perfeitamente ao trabalho de Ballester. Não se iludam, porém; atrás da fantasia e da brincadeira há idéias, idéias sérias sobre o impacto da modernidade sobre estruturas arcaicas. Uma situação que Ballester deve ter vivido com toda a intensidade na Espanha franquista. A batalha final, entre os defensores da Gorgona e os franceses que vêm em busca de navios representa um pouco o conflito de nossos tempos. Do qual Ballester é protagonista -e grande intérprete.

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