São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Intelectual exemplar

ANTUNES FILHO

"Um tanto expressionista", afirmou o professor Décio em meio a algumas lacônicas palavras ditas sobre a minha direção de "Os Outros", de Caetano Guerardi.
Boquiaberto, já envolvido pela aura que seu nome impunha, descobri que naquele momento tinha início minha admiração e profundo respeito pela trajetória do professor, jornalista, editor, escritor, historiador, ensaísta e crítico teatral Décio de Almeida Prado.
O encontro se deu por volta de 1952, quando, através de Madalena Nicol e Luiz Watson, se promoveu um festival "tapa-buraco" de teatro amador (hoje o que chamamos de teatro experimental) no sacrossanto Teatro Municipal -que, até então, raramente ou quase nunca recebia esse tipo de espetáculo em sua sala. Acredito que o professor Décio sequer havia sido convidado para tão desinteressante evento (acho que num domingo de manhã), onde meu grupo acabara de se apresentar.
Ainda no camarim, Décio convidou-me informalmente para participar como uma espécie de ouvinte assistente de direção do TBC, onde dirigiam Celi, Bollini, Salce, Ruggero Jacobbi -"monstros" europeus (alguns oriundos da Academia Nacional de Arte Dramática em Roma), e Ziembinski, o grande criador de "Vestido de Noiva", o descobridor de Nelson Rodrigues. Fui aceito e logo passei a frequentar os ensaios e a ouvir Cacilda, Ziembinski, Sérgio Cardoso, Cleide Yáconis etc. etc. etc.
Depois de um ano, ainda frequentando o TBC, fiz minha estréia profissional com "Week End" no Teatro Íntimo Nicete Bruno e, anos mais tarde, confirmava minha profissionalização com o Pequeno Teatro de Comédia ("Anne Frank", "Detective Story" etc.).
Continuando sua permanente assistência e orientação, em suas duas ou três críticas de um mesmo espetáculo, Décio não me poupava e era sempre duro -mas construtivo, com suas palavras que se tornavam um balizamento para o meu futuro trabalho.
Para mim, Décio é um exemplo do intelectual e da integridade moral diante do cotidiano e dos momentos mais aguçados de crises políticas no Brasil; nosso "Papa", que inaugurou e sistematizou em termos universitários a cultura crítica teatral. Lamento muito que hoje, na sociedade de massa em que vivemos, esse trabalho esteja reduzido a um relato subjetivo e impressionista, impedindo o espaço para o aparecimento de homens da sua envergadura.
Serei sempre agradecido à oportunidade que tive de aprender junto aos grandes diretores estrangeiros, e tenho certeza de que sem sua "mãozinha" não teria feito minha carreira de artista de teatro.
Com toda isenção, por tudo que fez e pelo que ainda faz, Décio de Almeida Prado é o meu grande modelo; o nosso "abridor" de estrada da crítica, ao lado de Nelson Rodrigues, outro "abridor" de estrada. Considero-os os dois maiores homens do teatro moderno brasileiro e, do ponto de vista ético, Décio é modelo para os jornalistas e para todos nós.

Texto Anterior: O PALCO DA MEMÓRIA
Próximo Texto: Os anos de formação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.