São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 1997
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Medicina de ponta e doentes previdenciários

SILVANO RAIA

A recente regulamentação da lista única de receptores para transplante de órgãos chama a atenção para um dos aspectos mais graves da crise da saúde pública atual, ou seja, a dificuldade de acesso à medicina de ponta pelos pacientes do SUS.
Graças a recursos canalizados por instituições de apoio à pesquisa, vários centros médicos universitários desenvolveram tecnologia de ponta comparável às mais avançadas do exterior.
Tipos de vocação, baixos salários no serviço público e outros fatores fazem com que a maioria dos profissionais formados nesses centros exerçam parte ou toda a atividade profissional em hospitais particulares.
Como consequência, ocorre uma grave injustiça, na medida em que a tecnologia de ponta, desenvolvida com recursos públicos, beneficia apenas um pequeno número de pacientes previdenciários (SUS) em hospitais universitários, enquanto a população abastada é atendida em hospitais privados.
Infelizmente, a infra-estrutura dos hospitais universitários, destinada à medicina de ponta, não pode ser aumentada, já que o ensino médico depende de uma distribuição equitativa das áreas disponíveis a todas as disciplinas do currículo.
No caso dos transplantes, os efeitos dessa distorção são mais dramáticos. Para alguns órgãos, como o fígado, a mortalidade na lista de espera é de quase 50%, enquanto 90% dos transplantados apresentam boa evolução.
Essa situação persiste apesar da dedicação de alguns grupos, como a Unidade de Fígado, que realiza procedimentos exclusivamente nos 20 leitos de que dispõe no HC. Já foram transplantados mais de 200 pacientes SUS, dos quais 52 em 1996, com 92% de bons resultados.
Apesar disso, a lista de receptores inclui cerca de cem pacientes, e o tempo médio de espera é de mais de um ano, o que determina mortalidade de 40%.
Nos hospitais privados, a lista inclui poucos receptores, e o tempo de espera é, geralmente, de menos de um mês, com mortalidade praticamente nula.
A lista única deve corrigir essa distorção. Prevê-se, todavia, o aparecimento de outra, que é a falta de leitos SUS em centros preparados para transplantes.
Diante disso, não é possível se omitir. Eventuais soluções, entretanto, implicam a definição de muitas variáveis, algumas específicas, o que estimula as equipes que realizam os procedimentos de ponta a procurarem soluções para realizá-los de forma universal, dentro de princípios de ética e justiça social.
Entenda-se assim a iniciativa da Fundação do Fígado, que há mais de dez anos apóia a Unidade de Fígado do HC, de criar o Certus (Centro para o Desenvolvimento Organizacional e Gerencial de Serviços de Saúde), para o desenvolvimento de técnicas administrativas e gerenciais em assistência médica.
Para isso, a fundação celebrou um convênio com o Innova (Instituto Nacional de Gestão e Serviços), associação multidisciplinar, sem fins lucrativos, apartidária, que reúne profissionais de grande experiência no setor. O objetivo maior é definir um modelo economicamente viável, capaz de oferecer de forma igualitária a tecnologia de ponta desenvolvida com os recursos do Estado. Pretende-se beneficiar os pacientes SUS, privados e conveniados, na proporção em que ocorrem na população.
Propõe-se um novo modelo, nem público nem privado, que aproveite as fundações para aplicação em larga escala da tecnologia avançada.
Pretende-se uma parceria entre capital e trabalho com gerenciamento compartilhado, na qual o patrimônio é do Estado (capital), a tecnologia, da equipe previamente adestrada (trabalho), e a gestão compartilhada é exercida pela fundação, com mentalidade privada, assistida por um conselho gestor.
A participação do Estado se justifica na medida em que a maioria dos leitos organizados conforme o novo modelo seja destinada a pacientes SUS.
Saliente-se, porém, que o patrimônio continua propriedade do Estado, que cede à fundação apenas o uso, para concretização do novo modelo. Os mesmos procedimentos serão realizados para os carentes e para os abastados, no mesmo local e em acomodações semelhantes, diferentes apenas em detalhes de hotelaria. Dessa forma, será possível pesquisar assistindo e assistir pesquisando, com vantagens inegáveis.
Propõe-se que o projeto-piloto seja o Instituto do Fígado e do Alcoolismo, com 280 leitos, que beneficiará cerca de 200 mil pacientes por ano, usando a tecnologia de ponta desenvolvida na Unidade de Fígado do HC.
A lei municipal 11.796, de 8/6/1995, que concede à Fundação do Fígado, por 90 anos, o uso de um terreno de 24 mil m2 na marginal Pinheiros, determina que 70% dos leitos sejam destinados a pacientes SUS e define os componentes do Conselho Gestor Comunitário, que acompanhará a administração.
Espera-se que o Instituto do Fígado e do Alcoolismo seja um projeto-piloto para outros que estendam aos doentes previdenciários (SUS) os benefícios da medicina de ponta disponível nos hospitais universitários do país.

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