São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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GUEVARA, VIVO OU MORTO...

EMIR SADER

No primeiro século em que capitalismo e socialismo se enfrentaram como sistemas estatais, uma série de biografias políticas buscam resgatar, de um lado e de outro, seus heróis e seus vilões. O mercado editorial investe pesado nesse novo gênero, retratando, em obras geralmente volumosas e monumentais, figuras políticas como Churchill, De Gaulle, Hitler, Mussolini; do outro lado da barricada, Lênin, Trótski, Stálin, Mao Tse-tung, Ho Chi-Min, Fidel Castro e, agora, Guevara.
Focalizando alguns dos personagens centrais do século, abordando os principais dramas históricos do período, tais biografias são essencialmente políticas, tanto pela transcendência das características marcadamente privadas dos biografados, quanto porque, nesse caso, com muito mais razão, vale o ensinamento de que "o privado também é político".
Modelos de referência obrigatórios, destacam-se nesse conjunto a biografia de Mussolini feita por Renzo de Felice e a trilogia do polonês Isaac Deutscher sobre a vida de Trótski. Felice, numa obra em seis volumes, que não perde de vista a história italiana bem como a européia e mundial, acompanha a trajetória do "Duce" desde o seu período "revolucionário" -passando pelas etapas de sua conversão ao fascismo, da conquista do poder, da organização e consolidação do Estado totalitário, da participação na Segunda Guerra- até a crise e queda do Estado fascista. Deutscher, na perspectiva de um marxista revolucionário, transita pelas aventuras e desventuras da primeira experiência histórica de poder anticapitalista no século, tomando como fio a trajetória de Trótski, de profeta armado a desarmado e, enfim, desterrado.
Tendo como parâmetro de avaliação esses exemplos bem-sucedidos, são decepcionantes as três recém-traduzidas biografias de Che Guevara. Apesar da revelação de cartas pessoais e de toda a riqueza de testemunhos que acrescentam, do ponto de vista político não apresentam nada de substancialmente novo que justifique uma reavaliação do papel do Che, de Fidel, de Cuba ou mesmo do movimento guerrilheiro latino-americano ou africano.
As três contêm um minucioso relato das viagens do Che, de seus encontros e desencontros, de seu papel na luta guerrilheira cubana e nos primeiros anos da construção do socialismo em Cuba. Detêm-se, com maior ou menor precisão, nas polêmicas sobre os critérios de construção do socialismo -suas discussões com os velhos comunistas e com Charles Bettelheim-, em suas críticas à política externa soviética e chinesa, expressa pela solidão do Vietnã, então abandonado devido aos interesses próprios das duas grandes potências comunistas, em sua efêmera passagem pela África e, finalmente, em suas divergências com o Partido Comunista boliviano acerca da condução da guerrilha naquele país.
Nesse último tópico, nem sempre fica claro que não se tratava apenas de um projeto para a Bolívia, mas da construção de um pólo de irradiação e potencialização das lutas já existentes na Argentina, no Peru, no Uruguai, no Brasil, na Venezuela, na Colômbia, na Guatemala e na Nicarágua. Ignorado esse dado crucial do contexto histórico, o Che fica reduzido a um "aventureiro", que vira herói quando triunfa, mas cuja derrota confirma o estigma. Nessa trilha, os livros de Anderson e Castañeda exageram no psicologismo para detectar no personagem -a posteriori- indícios de fatalismo, de uma "morte anunciada", corroborando assim a visão corrente que despolitiza o Che.
Das três, a biografia feita por Paco Ignacio Taibo -um escritor policial, uma espécie de Vázquez Montalban mexicano- é a que mais se identifica com o personagem e demonstra familiaridade com o tema. Com menores simpatias pela posição política ou empatia com o biografado, Anderson (amparado em fontes de Cuba, onde se instalou por três anos) e Castañeda (a partir principalmente de material de arquivos norte-americanos, ingleses e russos) buscam um tom mais crítico, tanto na avaliação de Cuba e Fidel, quanto no julgamento do próprio Che.
O mais problemático, porém, é o descompasso, comum às três biografias, entre o tratamento e o potencial do assunto. A revolução cubana se presta perfeitamente a uma leitura da sua época a partir das biografias de seus dois principais dirigentes. Apesar de ter-se realizado num pequeno país primário exportador caribenho, sua inserção no conflito internacional tornou-a uma experiência paradigmática, em primeiro lugar, porque a sua influência na América Latina foi, comparativamente, maior do que a da Revolução Russa na Europa.
As particularidades sociais da Rússia atrasada e a opção que a social-democracia ainda encarnava amorteceram, em parte, a ressonância da vitória dos bolcheviques. Já o triunfo dos revolucionários cubanos encontrou uma América Latina em crise econômica e social, com raros partidos similares aos social-democratas europeus e com partidos comunistas afetados pela crise de institucionalidade na qual assentavam sua trajetória política. Efetivada por meio de forças alheias a esses partidos, a revolução cubana incentivou -numa das décadas, junto com a de 20, em que a história esteve mais aberta ao longo do século- a aposta em caminhos alternativos.
Além disso, enquanto primeiro Estado socialista do hemisfério ocidental, Cuba ocupou um lugar central, em plena "Guerra Fria", na crise entre as duas superpotências, transformando-se numa espécie de esquina, palco do confronto entre os sistemas capitalista e comunista.
O modelo insurrecional soviético, adaptado às situações particulares de cada país, pautou por um certo tempo as tentativas revolucionárias -dos conselhos de fábrica de Turim às rebeliões de Xangai e Cantão, no final dos anos 20. A partir da década de 30, predominou, via China, a guerra de guerrilhas no campo, na Coréia e no Vietnã, enquanto os partidos comunistas europeus e latino-americanos consolidaram -mesmo após o período defensivo suscitado pela ascensão do nazismo e do fascismo- a linha de "frentes antifascistas".
A insurreição pela via da guerrilha, já desenvolvida na Colômbia e na Nicarágua, antes de 1959, proliferou, a partir do modelo vitorioso de Fidel, Guevara e companheiros, e em moldes muito similares -mesmo no caso das guerrilhas urbanas-, num primeiro ciclo, na Argentina, Uruguai, Brasil e, num segundo e ulterior, na Nicarágua, El Salvador e Guatemala.
A influência decisiva da revolução cubana sobre os processos históricos do nosso continente durou, pelo menos, um quarto de século. A isso se acrescenta o peso que Cuba passou a ter na África -do Congo ex-belga à Etiópia, passando por Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e uma longa lista de países nos quais o exemplo cubano, sua política internacional e sua solidariedade concreta desempenharam papel de relevo. Para um pequeno país do "pátio traseiro" dos EUA, que fez uma revolução democrática, depois transformada em socialista, Cuba teve uma influência surpreendente.
Essa potencialização do papel de Cuba deu-se num período marcado pelo fracasso da política das potência ocidentais para o Terceiro Mundo, pela relativa força que a condição de superpotência ainda conferia à URSS, pelo enfraquecimento dos partidos comunistas e por uma renovação ideológica radical nas novas gerações, cuja expressão simbólica máxima foram as manifestações ao longo do ano de 1968. A figura do Che foi uma das catalisadoras desse movimento internacional por vários fatores: (a) pela rebeldia e intransigências na luta por seus ideais; (b) pela luta frontal contra o capitalismo e o imperialismo; (c) pela solidariedade com todos os oprimidos; (d) por encarnar um modelo de construção do socialismo assentado em valores humanos e morais, numa postura de crítica frontal ao stalinismo. Sua vida de militante e dirigente revolucionário, relativamente breve -cerca de 10 anos-, representava uma aposta na viabilidade histórica desses ideais.
Essa imagem modificou-se ao longo dos 30 anos que nos separam da morte do Che. A comemoração da primeira década, em 1977, embora coincidindo com o refluxo das guerrilhas na América do Sul, presenciou o impulso inicial da luta armada centro-americana e os desdobramentos de vários avanços das forças socialistas na África, além da consolidação da derrota norte-americana no Vietnã e em toda a Indochina. Predominava ainda -ao lado de seus lemas antiimperialistas, sintetizados na frase "criar dois, três, muitos Vietnãs"- a imagem do "guerrilheiro heróico".
Dez anos depois, em 1987, o mundo já vivenciava mudanças mais substantivas. Apesar do triunfo sandinista, da generalização da luta armada em El Salvador e na Guatemala, e do revés norte-americano no Irã, desenhava-se já uma contra-ofensiva capitaneada pela dupla Reagan-Thatcher. Não se tratava apenas de uma nova ofensiva militar dos EUA, mas de uma reconversão capitalista que desembocou na hegemonia neoliberal, arrastando consigo até os partidos social-democratas. Com as crises do Terceiro Mundo -cujo réquiem foi a crise da dívida externa-, da URSS e dos países do Leste Europeu, delineava-se a nova configuração, conservadora, do poder internacional.
O Che foi uma das vítimas desse predomínio mercantil do neoliberalismo, que levou de roldão, junto com o socialismo -seja o cubano, o soviético ou mesmo o sandinista-, as possibilidades da luta de emancipação, de construção de sociedades solidárias e humanistas na América Latina.
Tudo prenunciava que os 30 anos da morte do Che representariam o seu sepultamento definitivo. De repente, no entanto, assiste-se a um, "dois, três, muitos Che Guevaras", a um "boom", no qual a tradução destas três biografias constitui apenas uma parte.
Embora decepcionante, a leitura dessas biografias -um total de 2.300 páginas- não deixa de ser enriquecedora. A simples descrição da trajetória do Che já justifica qualquer relato -seja ele histórico ou literário. O jovem argentino, cujo espírito aventureiro o levou a percorrer o continente do Sul ao Norte, vivenciou grande parte da sua história contemporânea. Seu percurso vai da revolução boliviana de 1952, passa pelo Apra peruano de Haya de la Torre, por uma das campanhas de Salvador Allende à presidência do Chile, pela experiência reformista guatemalteca encerrada com mais um golpe promovido pelos EUA e chega ao encontro com os "aventureiros" (hoje seriam chamados de "terroristas") cubanos que se propunham a derrubar um dos regimes mais protegidos por Washington.
Foi a partir dessa trajetória que o Che se candidatou a ocupar, na segunda metade do século -junto com Fidel, Mao, Ho Chi-Min-, o lugar que na primeira metade havia sido de Lênin, Trótski e Rosa Luxemburgo. De médico a comandante guerrilheiro, ministro da reforma agrária e, depois, da economia, teórico da transição ao socialismo -incluindo-se aí a idéia de criação do "homem novo" e a recuperação da dimensão internacionalista do socialismo-, o Che foi ganhando um papel de destaque na revolução cubana e latino-americana, uma proeza, se considerarmos o justificado peso -reconhecido pelo próprio Che- de Fidel Castro.
Entretanto, não devemos nos deixar levar pelos "anúncios" de biografia "definitiva", fotos "inéditas", revelações sensacionais. Não há nada disso. Trata-se apenas de mais um passeio por uma trajetória cuja força, demonstrada nesse retorno, torna o Che um dos mais atraentes personagens da história neste final de século. Nada mal para um "derrotado", em época de recuo do socialismo e da luta insurrecional, de mercantilismo da vida e das idéias.

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