São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Bordéis, bordéis, bordéis

ELIANE ROBERT MORAES

Na geografia do imaginário moderno, Paris ocupa uma posição de destaque. Se no século das Luzes ela já era conhecida como a "nova Babilônia", após a Revolução Francesa a fabulação literária consolidou por definitivo o mito da cidade como ponto de convergência dos mais diversos aspectos e experiências. Da capital revolucionária registrada pelo espectador noturno de Restif de la Bretonne ao centro cosmopolita e romântico do "flâneur" de Baudelaire, da cidade enigmática habitada pelo Maldoror de Lautréamont ao abrigo onírico dos personagens de Nerval, Paris tornou-se um topos recorrente na literatura francesa. É precisamente a essa linhagem que pertence "O Camponês de Paris", escrito por Louis Aragon entre 1924 e 1926, agora publicado no Brasil em excelente tradução.
Texto fundante do surrealismo -contemporâneo do primeiro Manifesto do movimento e antecessor de "Nadja", que Breton escreveria alguns anos mais tarde-, o livro de Aragon lança um novo olhar sobre a cidade de Paris nos anos 20. O passeio lírico do "camponês" que investiga a "natureza" urbana da capital desenrola-se em dois pontos: a passagem da Ópera antes de sua demolição e os jardins artificiais do Parque Buttes-Chaumont. Às descrições meticulosas, que fornecem o inventário preciso dos locais visitados, vêm juntar-se lembranças, diálogos, poemas e aforismos, além da reprodução de artigos de jornais, placas e outras inscrições de rua. Mais que simples colagem, tal procedimento visa a reproduzir, no plano da escrita, a experiência singular do caminhante moderno que, deixando-se levar pelas imagens transitórias que lhe oferece a paisagem cosmopolita, faz de seu passeio uma aventura do pensamento e da imaginação.
Ao longo dessa aventura, teorizada nos dois breves textos que servem de prefácio e conclusão ao livro, Aragon esboça os princípios de uma nova "mitologia", capaz de expressar o "sentimento moderno da existência". Trata-se de vasculhar o "inconsciente da cidade", de descobrir nela o "maravilhoso cotidiano", para assim libertar o espírito do "tolo racionalismo humano". Dessa forma, o autor se propõe a estabelecer nexos entre o percurso do caminhante e o curso de seu pensamento, ambos recusando a priori qualquer referência conhecida em função de uma exploração do desconhecido.
Para realizar seu projeto, o narrador de "O Camponês de Paris" aposta fundamentalmente na experiência do erro. À errância pelos labirintos da cidade vem somar-se o propósito de soltar as rédeas do pensamento, de abandonar-se a seus ritmos incertos e hesitantes, de acolher enfim sua própria possibilidade de errar. Exploração arriscada, na medida em que prescinde da orientação de mapas e de bússolas, mas que, por isso mesmo, obtém êxito na difícil tarefa de traduzir em palavras o que poderíamos chamar de "conhecimento do erro". Ou seja, como propõe Jeanne-Marie Gagnebin no posfácio a esta edição, a experiência de errar acaba desembocando "numa verdade que não seria, primeiramente, a coerência de nosso pensamento, mas sim o movimento mesmo de sua produção". No limite, ainda segundo a autora, o livro nos fornece uma descrição apurada dos "caminhos e descaminhos do próprio espírito".
Vale lembrar, porém, que o projeto de Aragon não se resume à dimensão espiritual. Sua intenção não é apresentar um processo de conhecimento que, começando por descrever a experiência física de um passeio errante pela cidade, termina oferecendo ao leitor uma topografia do espírito. Na verdade, os propósitos de "O Camponês de Paris" são bem mais ousados: trata-se de registrar a dimensão física do próprio pensamento -como, aliás, o escritor já havia proposto em "Le Libertinage", escrito entre 1922 e 1923, no qual atentava para a importância da experiência corporal da escrita na realização de seus textos. Nesse sentido, o "conhecimento do erro" que está no horizonte de Aragon resulta, sobretudo, de uma exploração sensível dos espaços obscuros da cidade e dos domínios baixos da condição humana.
"Em tudo aquilo que é baixo há algo de maravilhoso que me dispõe ao prazer": essa frase, enunciada no capítulo sobre a passagem da Ópera, e normalmente esquecida pelos comentadores do texto, indica os rumos do itinerário físico e mental do caminhante surrealista. Ora, de que nos fala o narrador de "O Camponês de Paris", senão de tudo o que é baixo? Sua atenção volta-se com frequência para as "artes menores", como a dos cabeleireiros, barbeiros, engraxates, alfaiates ou massagistas -a suscitar longas digressões sobre o corpo, das hérnias às carícias, da dor à lascívia. Seu roteiro pela cidade prioriza os "templos de culto equívoco", onde "a moralidade urbana vacila": são hotéis de reputação duvidosa, balneários decadentes, teatros suspeitos, alamedas obscuras de um jardim de periferia e ainda bordéis, bordéis, bordéis. Entre os personagens preferidos, encontramos toda sorte de tipos que exercem "profissões malditas" ou, ao menos, "atividades paradoxais": de vendedores ambulantes a trapaceiros e criminosos, de anônimos "casais dos parques" às prostitutas, essas -"clarões vivos pelo preço das mães de família que encontramos nos passeios públicos"- onipresentes no passeio de Aragon.
Uma tal preferência pelo que é baixo -ou, como propõe o autor, o "gosto pelo equívoco"- não deixa de repercutir intensamente na maneira de pensar do camponês cosmopolita. Assim como os banhos inclinam os homens a "devaneios perigosos", o contato com os lugares suspeitos representam igualmente "um meio de acesso a domínios proibidos" à razão. Eis, portanto, o motivo de seu fascínio pelos bordéis: "há nesses lugares uma atração que não se define, que se experimenta"; lá chegando, "nada mais me serve dessa linguagem, desses conhecimentos e dessa educação"; enfim, "acredito falar uma língua estrangeira se for preciso explicar a alguém o que me traz aqui". Trata-se, portanto, de recriar a linguagem para que ela possa expressar uma consciência ampliada pelas manifestações mais intensas do corpo.
Em outras palavras: a experiência física do caminhante -que se perde nos lugares mais baixos de Paris- termina por perverter o pensamento, obrigando-o a descer ao nível das ocorrências concretas. "Desça para sua idéia", propõe o camponês no final da caminhada, "habite sua idéia como um operário que fura poços pendurado em sua corda". Essa "descida" produz o que Aragon chama de "passagem para a desordem", conforme insiste no epílogo do livro, como se estivesse revisitando o percurso vertical e descendente que ele propõe. Ao surrealismo solar das páginas iniciais, manifesto na simbologia dos vidros e espelhos que proliferam na passagem da Ópera, vem opor-se o surrealismo noturno da visita ao parque, que se conclui na opressiva Ponte dos Suicidas, observatório de abismos infernais.
Assim também, se na descrição da primeira caminhada o narrador alude a um "gosto de confusão que é próprio dos sentidos, que os leva a desviar cada objeto de seu uso, a pervertê-lo, como se diz", no relato seguinte ele sugere que o acesso à "confusão" implica necessariamente a passagem do alto ao baixo -"a cabeça agora aprende a conhecer os pés". Como se vislumbrasse, finalmente, um ponto de chegada no seu percurso vertiginoso, ele sentencia: "E o homem, nesse lugar de confusão, reencontra com assombro a marca monstruosa de seu corpo e sua face escavada. Ele se choca contra si mesmo a cada passo. Eis aí o palácio de que você precisa, grande mecânica pensante, para saber enfim quem você é".
Ao cabo da aventura, Aragon depara-se com uma imagem sombria da cidade e do homem. Na paisagem cosmopolita, o "maravilhoso cotidiano" cede lugar ao "trágico moderno"; os cenários sagrados das "novas Éfesos" são substituídos pela vista tenebrosa da "Meca dos suicidas"; o "universo colorido" da capital perde sua luminosidade para as cores escuras de uma Paris pintada por Arnold Bõcklin. Enfim, na paisagem interior do homem, o pensamento curva-se às evidências de um corpo monstruoso que anuncia, nos contornos sinistros de sua face escavada, a figura da morte. Nesse momento, confundem-se os destinos da cidade e do caminhante; atento a tal indeterminação -entre o obscuro "inconsciente" de uma e os limites da "grande mecânica pensante" do outro-, Aragon transforma a confusão, a desordem e o erro em caminhos do conhecimento.

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