São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Platonismo não-escrito

ALBERTO ALONZO MUÑOZ
Sabe-se que a doutrina de Platão não se limitava ao exposto publicamente nos "Diálogos": ao lado destes havia as "doutrinas não-escritas", reservadas aos discípulos e transmitidas pela via oral. Qual o conteúdo e a relação dessas doutrinas com as expostas nos diálogos? Essa é a questão que G. Reale pretende responder.
O tema das doutrinas não-escritas representou com frequência uma dificuldade para os intérpretes de Platão. Os testemunhos antigos sempre deram maior importância às teses dos ensinamentos orais, deixando em segundo plano as doutrinas dos "Diálogos". Na maioria das vezes em que Aristóteles, por exemplo, se refere a Platão, não analisa os "Diálogos", mas seus ensinamentos não-escritos. Mas é o próprio Platão quem, paradoxalmente, afirma no "Fedro" e na "Carta 7" que o meio ideal para a transmissão da parte mais importante de sua doutrina é o ensino oral e que a escrita é um meio imperfeito de comunicação se comparado à oralidade que serve apenas para recordar a memória dos que já sabem o que ali está escrito.
Era indubitável que Platão se empenhara na divulgação oral de uma parte importante de sua doutrina. Mas os poucos materiais que permitiriam a reconstrução dessa parte esotérica de seu pensamento desestimulou a maioria dos comentadores deste século, que preferiram concentrar os esforços na análise dos "Diálogos". O mérito de Reale está em chamar a atenção para essas evidências, a fim de buscar reconstruir assim um sistema platônico novo e mais amplo.
A tentativa é ousada e bastante arriscada. Reale, contudo, está convencido de que é revolucionária para os estudos platônicos e, na primeira parte do livro, dedicará um bom número de páginas para caracterizá-la como "um novo paradigma na interpretação de Platão", proposto pela escola platônica de Tubingen, na qual se apóia.
Segundo Reale, a Antiguidade nunca deixou de dar importância aos testemunhos referentes às doutrinas não-escritas: Aristóteles primeiramente, mas também os filósofos médio e neoplatônicos as levaram em consideração nas suas reconstruções do platonismo. É apenas no século 19, com Schleiermacher, que o pensamento platônico passa a ser visto como inteiramente contido nos "Diálogos". Esse "antigo paradigma" se debateria com a "anomalia" dos célebres textos em que Platão indica que não vê com bons olhos a transmissão, pela via escrita, da parte mais importante de sua doutrina. Essa anomalia era acrescida pelos relatos de seus discípulos acerca do conteúdo dos ensinamentos orais que não repetiam simplesmente os "Diálogos", mas acrescentavam informações que ofereciam um quadro bem diverso. Alguns preferiram recusar tais testemunhos, considerando-os como incorreções ou deturpações, principalmente os provenientes de Aristóteles. Preço que Reale considera, provavelmente com razão, alto demais para ser pago.
A estratégia será, então, não apenas levar em consideração a contribuição desses testemunhos para a construção da teoria platônica, mas considerá-los como o núcleo da teoria. A segunda parte procurará descrever a estrutura metafísica deste "novo" sistema platônico, agora com a inclusão, numa posição central, dos elementos extraídos das doutrinas não-escritas. Para os que estão habituados com o "paradigma tradicional", o novo é surpreendente. Trata-se de um Platão muito mais próximo dos médio-platônicos, em que a doutrina das Formas é coroada por dois princípios -o Uno e a Díade- que produzem, por sua interação, todos os níveis metafísicos da realidade.
Para este Platão excessivamente metafísico, o Uno é, segundo Reale, o "princípio de determinação". Por participação nele, os objetos (inclusive as Formas) ganham uma definição e um contorno precisos e não deverá surpreender-nos que Reale afirme que Platão identifica, agora, o Uno e o Bem, e que ambos estejam acima da Idéia do Ser. Por sua vez, a Díade, segundo princípio supremo ao lado do Uno, representa o "princípio de indeterminação" e do Mal, ganhando ambos os princípios conotações éticas. É a matéria sobre a qual o Uno irá agir, dando uma forma determinada e um contorno preciso e, assim, originando todos os demais constituintes da realidade.
Essa doutrina dos primeiros princípios passará por dois testes textuais. Reale escolhe algumas dificuldades clássicas de interpretação da doutrina platônica dos "Diálogos" e tenta abordá-las a partir dos resultados que conseguiu. Trata-se, a meu ver, da parte mais insatisfatória do livro, na qual o autor escolhe alguns diálogos e tenta solucionar os problemas que neles encontra, recorrendo a analogias bem vagas entre as afirmações de Platão e as características, sempre muito genéricas, dos princípios primeiros de sua protologia. O leitor que se persuadir das teses de Reale poderá entretanto defender o livro, afirmando que agora, após a articulação das "bases do novo paradigma", caberá à pesquisa sobre Platão resolver esses "quebra-cabeças", cuja via de solução ele apenas pretendia esboçar. Seja como for, os comentários de Reale nesta parte, genéricos, confusos e excessivamente sumários, deixam bastante a desejar.
A última parte expõe o segundo teste de sua interpretação e enfrenta, agora com resultados bem mais animadores, a questão do papel do Demiurgo na construção do cosmo e sua relação com o Uno e a Díade. Reale centra o foco de análise nas passagens em que Platão expõe a ação do Demiurgo como sendo a daquele que introduz a "definição do Uno" na "indefinição da Díade". Como há evidências de que Platão considerava o Demiurgo como produtor tanto do mundo das Idéias quanto do mundo sensível, Reale recorrerá a uma "matéria das Idéias", análoga à matéria do mundo sensível, que o Demiurgo será encarregado de elaborar e que, mais uma vez, representa a Díade ou princípio de indeterminação. O Uno e a Díade agora entrecruzam-se, gerando toda a arquitetônica do mundo sensível e do mundo inteligível, pelas mãos do Demiurgo que os cria.
O leitor especialista certamente sairá insatisfeito e decepcionado com muitos aspectos do livro. O Platão de Reale é excessivamente metafísico, marcado por sua leitura de discípulo assumido da Escola Platônica de Tubingen, de modo que é bem magro o espaço atribuído à epistemologia, à teoria do significado, à ética ou à política, tal como a discussão bibliográfica de tudo o que não esteja em alemão ou italiano. Por outro lado, os princípios da Díade e do Uno ganham no livro um colorido tão vasto e tão pouco preciso que passam a servir para tudo -da fundamentação e criação das Formas à organização do mundo sensível. A idéia de recorrer a T. Kuhn e chamar sua interpretação de "novo paradigma" é sem dúvida exagerada, sobretudo se lembrarmos de que pelo menos desde o livro de Findlay ("Plato: The Written and Non-Written Doctrines", 1974) se vem insistindo em que as doutrinas não-escritas merecem maior cuidado do que o que lhes foi tradicionalmente destinado.
Pode parecer, pelo que eu disse, que o livro não vale a pena. Engano completo. Trata-se de uma obra séria e importante que merece ser lida com cuidado e, sobretudo, debatida. Como lembra o prof. Vaz no prefácio, o livro de Reale tem o mérito de haver conseguido colocar em primeiro plano as doutrinas não-escritas, ao lado da doutrina dos "Diálogos". É, aliás, muito louvável sua publicação em português, o que alimentará as pesquisas em filosofia antiga no Brasil. Vamos esperar, contudo, que da próxima vez o mesmo espaço dado a Reale (do qual já temos a "História da Filosofia Antiga", também lançado pela Loyola) seja partilhado com outros pesquisadores internacionais de mesmo calibre e não necessariamente do mesmo estilo.

Alberto Alonzo Muñoz é doutorando em filosofia antiga pela USP.

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