São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Maldição e utopia

MARILENA CHAUI

Quando o Padre Eterno lançou sua maldição sobre o pecador originário, seu brado ecoaria pela noite dos tempos: "Ganharás o pão com o suor de teu rosto". As utopias do chamado mundo ocidental sempre se anunciaram como o fim dessa maldição. Quem haveria de imaginar que, se o Padre Eterno repetisse hoje o brado colérico, suas palavras seriam ouvidas como uma bênção? Quem, até 20 anos atrás, poderia supor que as lutas de hoje não seriam, como as de ontem, pela abolição do trabalho explorado, mas para sua manutenção? Quem imaginaria que o sonho da roca, fiando sozinha os fios e libertando os humanos da servidão do labor, iria tornar-se o inferno da vergonha, da degradação e da perda de esperança na emancipação? São estas as questões que Viviane Forrester nos propõe em "O Horror Econômico", contra a indiferença e angústia de nosso presente, mas sobretudo contra os que procuram as fáceis (e impossíveis) soluções de curto prazo, que desnaturam a própria interrogação, porque recusam examinar até o fundo as próprias questões.
Qual a questão a compreender? Que para a economia contemporânea o trabalho não cria riqueza, os empregos não dão lucro, os desempregados são dejetos inúteis e inaproveitáveis, e que precisamos fazer o luto de uma sociedade fundada no sacrossanto dever de trabalhar, se quisermos reagir e encontrar soluções para a sociedade por vir. Enquanto os desempregados e subempregados dos países ricos e pobres e os superexplorados dos países pobres se sentirem culpados e envergonhados pelo desemprego e pelo subemprego, enquanto as políticas de promessa de mais empregos forem acreditadas, e enquanto acreditarmos que o desemprego em massa é uma "crise" (portanto, algo passageiro e solucionável), nada será pensado e nada será feito.
O muro de Berlim pôde cair porque um outro, invisível e intangível, já havia sido erguido pela economia capitalista: o muro que, no interior de cada sociedade e entre os países, separa os privilegiados que fruem a realidade virtual de suas ações (a finança internacional, o "jet set") e os desempregados, massa de humilhados e ofendidos, de envergonhados e culpados por não possuírem aquilo que o capitalismo não lhes deixa possuir e os faz crer que têm o dever moral e social de possuir: o emprego.
É esse novo muro (em geral, apelidado de modernidade e que provoca muxoxos zombeteiros contra aqueles que ainda querem empregar conceitos do "século 19") que explica um fato que, por si só, expõe a economia contemporânea em toda sua verdade: em março de 1996, uma queda vertiginosa das bolsas de valores em todo o planeta e o pânico em Wall Street foram causados pela notícia de que 705 mil empregos haviam sido criados nos EUA. O jornal francês "Le Monde" comentava: "As praças financeiras parecem vulneráveis a qualquer má notícia". E Viviane Forrester, observando que o fato passou inteiramente despercebido à opinião pública, comenta: "Embora fosse uma confissão das potências financeiras, reconhecendo aí seus verdadeiros interesses e, portanto, dos poderes políticos influenciados por elas. (...) Uma confissão dos governos que sem convicção encenam, para um público entediado, exercícios de salvamento (...) destinados a reforçar a convicção de que se trata de uma retração do emprego, grave, mas temporária e remediável".
Nada mais exemplar do que a grande solução britânica: o "trabalho a hora zero", em que o empregado é remunerado quando trabalha, mas só é empregado de vez em quando, devendo ficar em casa disponível e não remunerado enquanto uma empresa não o chamar e o usar pelo tempo que julgar necessário. Melhor ainda é o conceito que, diz Forrester, nem o surrealismo ousou inventar, o da "empresa cidadã", aquela que recebe todo tipo de subvenção, isenções de taxas, possibilidades de contratos vantajosos a fim de que, com civismo, ofereça empregos. "Benevolente, ela aceita. Não emprega ninguém. Desloca-se ou ameaça fazê-lo se tudo não correr conforme sua vontade."
Ninguém pergunta qual a operação miraculosa pela qual a miséria do desemprego se traduz em vantagens para as empresas e sem qualquer resultado! Por que a estupidez complacente de governos que não enxergam que empresas não são cívicas (pertencem à esfera privada, isto é, ao mercado), não são agentes de caridade e não empregam, porque não precisam dos empregos para ter lucro? Não só isso. O poder mundial se encontra nos organismos econômicos privados (Banco Mundial, FMI etc.), com os quais os Estados contraem dívidas públicas: isto é, os cidadãos devem pagar para que seus governos façam o que esses organismos privados exigem que façam. No caso presente, que "eliminem o déficit público", isto é, destruam ou não criem políticas sociais que sirvam de paliativo à barbárie econômica.
Que acontecerá, indaga Forrester, quando, em lugar das democracias existentes, o autoritarismo crescente do "pensamento único" (competitividade, fim do déficit público pela supressão de direitos sociais, desregulação, "modernização" etc.) chegar ao totalitarismo? A história não esqueceu ainda a "solução final" que o nazismo encontrou para aqueles que decretou serem dejetos humanos, os decaídos, os imprestáveis, os impuros. Nada impedirá que o "pensamento único" dos donos da economia e do planeta chegue à pergunta crucial: como livrar-se deles? Eles que, desta vez, serão os desempregados presentes e futuros. Afinal, quem, sendo moderno, não sabe que tudo vai mal por causa dos privilégios dos funcionários dos correios e telégrafos, dos condutores de ônibus e metrôs, dos bancários, dos professores das redes públicas de ensino, dos aposentados com suas incríveis vantagens, do salário desemprego que arruína o Estado? Dos jovens pobres que a escola, com esmero, prepara para o trabalho, e que, infames e desajustados, preferem a delinquência, a droga e a mendicância? Dos imigrantes (e dos migrantes, no caso do Brasil) que deixam seu lugar natal para vir roubar os empregos dos outros? Dos sindicatos que, em vez de cooperar com a "empresa cidadã" e o Estado moderno, lançam-se no atávico e arcaico corporativismo dos privilegiados, numa irresponsabilidade e imoralidade jamais vistas?
Curiosamente, nenhuma crítica é dirigida aos organismos mundiais privados e à submissão dos Estados a eles, nem à "empresa cidadã", com suas subvenções e isenções, que se desloca à vontade pelos territórios, deixando o rastro do desemprego e da miséria a cada novo deslocamento. A culpa da miséria é dos miseráveis, quem ignora verdade tão elementar? Nenhuma reação contra uma escola que prepara para o emprego numa sociedade do desemprego endêmico. Nenhuma análise que mostre aos Estados que a "criação de riqueza" já nada tem a ver com o trabalho e o emprego. Cegueira e surdez alimentadas pela propaganda dos governos e pela mídia satisfeita com a realidade virtual.
Houve tempos de angústias mais amargas, de grande ferocidade e crueldade. Mas eram ostensivos e provocavam indignação. A apatia e a indiferença hoje reinantes, escreve Forrester, possuem uma causa mais surda e quase inaudível. De fato, "qualquer que tenha sido a história da barbárie ao longo dos séculos, até agora o conjunto dos seres humanos sempre se beneficiou de uma garantia: ele era essencial ao funcionamento do planeta, à produção e à exploração dos instrumentos do lucro. (...) Pela primeira vez, a massa humana não é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente, para o pequeno número que detém os poderes".
"Horror Econômico", lúcida exposição da barbárie contemporânea, é um brado de alerta para que reajamos ao nosso estupor e tomemos consciência dos eventos nos quais se desenha a história, porque neles ela se torna legível e é preciso que não se tornem legíveis "mais tarde, tarde demais". Não ter medo do medo, convida-nos Viviane Forrester, não julgar insensato exigir "um sentimento áspero, ingrato, de um rigor intratável que se recusa a qualquer exceção: o respeito".

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