São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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A formação de Benjamin

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA

No final deste mês ocorrerá em Amsterdã o Congresso Walter Benjamin, promovido pela Organização Internacional Walter Benjamin, sediada na mesma cidade. Certamente, as palestras a serem apresentadas já acolherão muitas das informações contidas nessas "Cartas", que vêm sendo publicadas desde 1995.
Os dois primeiros volumes fornecem um documento inestimável da força contida nesse gênero literário. Essa edição ocorre no contexto da publicação integral das cartas completas de Benjamin, que deverá compreender, no total, seis volumes. A edição do texto segue os rígidos padrões da tradicional filologia alemã: cada um dos nomes, obras ou eventos mencionados por Benjamin em suas cartas vem acompanhado de preciosas notas esclarecedoras que abrem um mundo de referências ao leitor.
O resultado é um impressionante "hipertexto" que, nesses volumes já lançados, permite o acesso à construção de um dos pensamentos mais complexos e ricos do nosso século. Essa construção é, em si, "sui generis" porque dá-se tectonicamente, via acúmulo de camadas que se movimentam lentamente, superpõem-se umas às outras, mas também rebelam-se, interpenetram-se e se destroem. A imagem resultante é um pensamento que não pode ser enquadrado nos parâmetros tradicionais. A importância destas cartas está justamente em revelar que a força motriz da obra de Benjamin encontra-se na vivacidade do seu pensamento, na sua capacidade de entrecruzar pensadores e de "ler o mundo" com perspectivas sempre novas, desconcertantes.
Os efeitos desta publicação sobre a recepção da obra desse filósofo judeu-alemão não podem ser exagerados. A cada página, o leitor se defronta com um capítulo inédito da formação intelectual e sentimental do seu autor. São centenas de cartas, muitas das quais nunca antes publicadas ou que se encontravam dispersas em inúmeras publicações.
O primeiro volume abre com uma carta de 15 de julho de 1910, a data do aniversário de 18 anos de Benjamin. A partir dessa carta, acompanhamos a história do Walter Benjamin líder das organizações de juventude. Essas organizações, como a conhecida Wandervogel, no início do século, banhadas num ideário que misturava Rousseau e Nietzsche, espalharam-se, então, pela Alemanha.
Benjamin, que era filho de uma rica família de judeus assimilados berlinenses, cujo pai era comerciante de antiguidades, cursou uma escola humanista e costumava reunir-se em rodas com os colegas para leituras em grego clássico. Nas cartas acompanhamos vários dos autores que ele, na condição de estudante, frequentou: Karl Philipp Moritz, Tolstoi, Christian Morgenstern, Flaubert, Baudelaire -e também Jakob Burkhardt, Friedrich Schlegel, Kant, Edmund Husserl, Hermann Cohen, Baader etc. Sobretudo o kantismo de Benjamin, o seu esforço em compreender a obra de Kant e o valor que ele lhe atribuiu ficam patentes no primeiro volume das cartas, em que chega a afirmar que a filosofia só pode existir dentro do espaço do kantismo. No entanto, ele desprezou os neo-kantianos da Escola de Marburgo.
Em 1912, inicia os estudos na Universidade de Albert-Ludwig, em Friburgo, onde foi aluno de Friedrich Meinecke e de Heinrich Rickert, mas as suas energias físicas e intelectuais estavam todas voltadas para o seu "mestre" no movimento de juventude, Gustav Wyneken, a quem ele dedicava uma veneração cega. Ele menosprezava as aulas de Rickert. Escrevendo sobre Heinrich Wõlfflin, cujas aulas na pinacoteca de arte antiga de Munique acompanhou, ele reproduz o boato segundo o qual esse professor queria trocar a história da arte pela botânica.
Benjamin dedicou-se então à redação de ensaios sobre a reforma na educação e sobre a cultura juvenil. No entanto, como se pode acompanhar de perto nas suas cartas, com a Primeira Guerra e o apoio entusiástico de Wyneken a ela, Benjamin rompe com seu mentor.
A defesa da "cultura da juventude" desse período deixou marcas profundas no Benjamin maduro: as suas posteriores reflexões sobre a experiência ("Erfahrung"), a memória e a infância têm aqui uma das suas origens.
Quatro meses após o rompimento com Wyneken, Benjamin trava amizade com uma figura-chave para o seu futuro intelectual: Gershom Scholem. Agora vem à tona um outro elemento central nas correspondências e na construção da sua identidade: a questão do "espírito judaico", nas suas palavras. Na verdade, desde 1912 esse tema pode ser lido nas suas cartas e sempre ocupará um lugar importante no seu pensamento. Numa carta a Ludwig Strauss, afirmou: "Para mim o judaico é nuclear".
Esse judaísmo, no entanto, não tem nenhuma ligação com o nacionalismo; Benjamin descartou o sionismo -ele é antes um fenômeno eminentemente cultural. A Martin Buber ele escreve, afirmando tanto que "o problema do espírito judeu é um dos maiores e mais insistentes objetos do meu pensamento", como também que se recusaria a redigir artigos de "propaganda" do judaísmo.
O ideal de escrita de Benjamin era inspirado no mote holderliniano do "sacro-sóbrio" ("heilig-nüchtern"): "Eu só posso compreender a escrita como poética, profética, objetiva -de todo modo, no que tange ao efeito: apenas mágica, ou seja, i-medi-ata", lemos numa outra carta a Buber. De modo paradoxal, ele busca incessantemente na sua escrita justamente aquilo que é "negado à palavra", ou seja: o "Ausdruckslos", o "sem-expressão".
Não apenas a filosofia da linguagem é desenvolvida nas suas cartas; nelas também pode-se ler uma outra faceta: a de um dos maiores teóricos da mídia do século, como podemos apreciar, por exemplo, nas suas reflexões sobre o cubismo e sobre a pintura de Klee, o artista que ele mais admirou -e que aproximava apenas de Macke "e talvez de Kandinski".
Benjamin foi um dos primeiros a notar a "superação" do paradigma da imitação na pintura moderna: no cubismo não se deve buscar "nem a imitação nem o conhecimento de uma essência", lê-se numa carta a Scholem, de 1917.
Também a sua complexa relação com a obra de Heidegger pode ser acompanhada de perto. Ela oscila entre a admiração e o desprezo.
As cartas permitem ainda observar "pari passu" a elaboração de seus ensaios (sendo que 1916 é um ano decisivo nesse âmbito da sua produção), a composição da sua dissertação sobre Friedrich Schlegel e Novalis, de 1919, do ensaio sobre as "Afinidades Eletivas" de Goethe, de 1922, e, finalmente, do monumental trabalho de livre-docência, "Origem do Drama Barroco Alemão", redigido em Capri, a ilha italiana para onde ele se recolhera durante oito meses em 1924.
Isso sem contar, evidentemente, as histórias dos amores de Benjamin, que estão particularmente bem documentadas nessa edição pelas cartas da sua mulher Dora Benjamin a Scholem, acerca do "surto" de "afinidades eletivas" surgido entre o casal Benjamin e um outro casal de amigos. Também uma briga entre ele e Scholem, que praticamente levou ao rompimento dessa amizade, é pela primeira vez revelada em detalhes, com uma carta de Scholem a sua noiva que já emigrara para Jerusalém.
"A correspondência é o único modo de expressão de muitos temas, graças ao seu caráter próprio, que sempre admite e garante o sofrimento e o sentimento do escritor." Com essas palavras, dirigidas ao seu amigo de escola Ernst Schoen, Walter Benjamin define de modo conciso a essência do gênero epistolar. Ao percorrer suas cartas, com muita frequência o leitor constatará a justeza da definição.

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