São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Além do espaço e do tempo

RUBENS RICUPERO

Só há poucos meses descobri, graças a meu amigo Marcos Galvão, um livro fundamental para entender o mundo de hoje, "As Consequências da Modernidade", de Anthony Giddens, publicado em 1990.
Um dos principais sociólogos ingleses, recentemente nomeado reitor da London School of Economics, o autor não acredita que estejamos vivendo num período pós-moderno. Afirma, ao contrário, que agora é que o processo da modernidade, nascido na Europa no século 17, começou verdadeiramente a produzir consequências extremas.
Dentre as razões da vertiginosa aceleração das mudanças, um papel central é ocupado pela separação espaço-tempo. Há no livro páginas penetrantes sobre como a invenção do relógio mecânico e os avanços da cartografia possibilitaram a representação abstrata do tempo e do espaço. Criou-se, assim, primeiro uma dimensão "vazia" do tempo, "zonas do dia", como a "jornada de trabalho". Mais tarde, esvaziou-se o espaço, estabelecendo-o como independente de qualquer lugar ou região.
Para Giddens, a globalização é a intensificação em escala planetária das relações sociais, de tal modo que acontecimentos locais são afetados por eventos longínquos e vice-versa.
É por isso que a atual revolução da informação é muito mais profunda que as revoluções industriais anteriores. Enquanto essas consistiam basicamente na transformação da matéria e da energia, a atual se ocupa da transformação do tempo e do espaço.
É também por esse motivo que a presente revolução é, em grau incomparavelmente maior que as do passado, um produto de inteligência, de fatores culturais ligados à ciência. Não é de admirar, em consequência, que o conhecimento se tenha tornado mais importante que a mão-de-obra, o capital ou as matérias-primas como fator de produção.
Após revolucionar os mercados financeiros, tornando o mundo um lugar ao mesmo tempo mais excitante e perigoso, essas forças já iniciaram a transformação dos mercados comerciais.
O comércio eletrônico, com efeito, de que tanto se fala ultimamente, é a possibilidade de utilizar redes de informação, inclusive a Internet, para realizar uma transação comercial, desde os primeiros contatos entre vendedor e comprador, até o fornecimento do produto por via eletrônica (software, música, arte) ou não e o pagamento.
Como alternativa aos métodos tradicionais baseados em papéis e documentos, o comércio eletrônico vem se expandindo a uma velocidade extraordinária, calculando-se que no ano 2000 possa até alcançar cifras entre US$ 30 bilhões e US$ 60 bilhões por ano.
O maior desafio dessa nova modalidade de comércio não é, porém, de natureza quantitativa, mas sim qualitativa e política. Como os contratos podem ser concluídos eletronicamente por assinatura digital, os pagamentos efetuados pela mesma via e o fornecimento de certos itens intangíveis realizado pela rede de informação, todo o edifício de regras do comércio "transfronteira" (GATT, OMC) e de propriedade intelectual (convenções de Paris e de Berna) se vê abalado.
O poder dos governos de regular a economia, implementar políticas e cobrar impostos pode sofrer uma erosão adicional.
É fácil imaginar exemplos. Se um programa de computador pode ser adquirido, e fornecido pela Internet, por um comprador no Brasil de um vendedor na Malásia e o pagamento efetuado eletronicamente a uma conta bancária no Caribe, que tipo de controle pode exercer qualquer governo sobre o conteúdo das mensagens e como e onde se poderia cobrar um imposto sobre a transação?
A mesma dificuldade de controle se verifica em relação ao conteúdo pornográfico ou racista das mensagens, à defesa da privacidade da correspondência eletrônica, à garantia da confidencialidade dos contratos ou à segurança dos pagamentos.
Estamos no limiar de um mundo novo, de um território inexplorado, onde os conceitos tradicionais de espaço e de tempo a que nos havíamos habituado se apresentam sob uma luz diferente, que nos embaralha a visão.
Essa idéia de fronteira do desconhecido com tudo o que ela encerra de promessa e perigo estava presente no discurso do presidente Clinton sobre o assunto em 1º de julho. Nele se podiam perceber os ecos da "nova fronteira" de Kennedy, do tema mítico da fronteira no inconsciente americano, do conselho famoso: "Vá para o Oeste, jovem".
Junto com a exploração de Marte, o comércio eletrônico se torna a nova fronteira capaz de infundir entusiasmo e vitalidade a um governo ameaçado pela sina do segundo mandato.
Quando o mundo corria o risco de tornar-se previsível e monótono, eis que uma nova fonte de excitação desperta os espíritos adormecidos. Já dizia o poeta:
"Como ficou chato ser moderno,
Agora serei eterno."

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