São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Organismos digitais e a prisão afetiva

STELLA SENRA TIAGO S. GARCIA DOS SANTOS

TIAGO S. GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os bichinhos virtuais, baseados na interatividade com o usuário, trazem à tona uma questão complexa: a aproximação entre o orgânico e o mecânico.
Tratada de modo simplista no brinquedo, ela data do início do século 20, quando a distinção entre esses dois campos começou a se romper: de um lado, sistemas predominantemente mecânicos foram transformados, assimilando o elemento orgânico (na criação da linha de montagem, por exemplo); de outro, sistemas orgânicos assimilaram elementos mecânicos (por exemplo, quando a genética toma o DNA como um computador biológico, abrindo a possibilidade de criar organismos ou de mudá-los, reprogramando ou "engenheirando" o seu DNA). Até mesmo a noção de inteligência artificial nasceu da interação entre o desenvolvimento do computador e as novas descobertas da fisiologia e da psicologia.
Explorando esta comunicação entre dois campos, a própria ciência já criou bichos virtuais: o programa de computador de Richard Dawkins, por meio do qual figuras baseadas num código genético simplificado podem sofrer mutações ao acaso; ou a colônia virtual de formigas de G. Langton, programadas para cooperar e seguir rastros na tela de um computador. Os próprios vírus que infestam computadores funcionam como vírus biológicos no controle de seus programas, usando-os para fazer cópias de si mesmos e para se propagarem.
Também os artistas têm buscado explorar a interatividade propiciada pelo computador, discutindo ao mesmo tempo a aniquilação da descontinuidade entre mecânico e orgânico: abordando as fronteiras entre arte-ciência, "real" e "artificial", eles vêm criando não mais "objetos", mas "processos", que visam, por sua vez, pôr em relação espectador e obra.
Os bichinhos artificiais manifestam talvez a forma mais tosca desta interação, pois não passam de um programa -baseado nas relações mínimas entre um bicho de estimação e seu dono-, no qual a intervenção humana já está inteiramente determinada e as emoções devem apenas "repetir" o modelo fornecido pela parceria com o animal "real".
Uma proposta muito mais sofisticada é a de Christa Sommere e Laurent Mignogneau, com o trabalho "A-VOLVE" (1993-94). Trata-se de um ambiente interativo em tempo real, onde os visitantes interatuam com criaturas virtuais. Desenhadas na superfície de uma tela pelo visitante, elas surgem em três dimensões na água de um tanque de cristal, onde nadam e são submetidas às leis da evolução (podem se alimentar, se acasalar -se reproduzindo segundo as leis genéticas-, se destruir umas às outras e morrer). Mais complexo -ele conta com a intervenção direta do espectador, que pode, por exemplo, proteger as criaturas do atacante-, este trabalho apresenta, no entanto, uma concepção limitada de interatividade e, por isto, ainda parece esteticamente pobre. Apesar da influência do público no meio ambiente, restrita à mera "ação", sua participação emocional é pequena e ainda se inscreve no velho modelo afetivo "projeção-identificação" dentro de um "drama", a luta pela vida.
Muito mais feliz, desse ponto de vista, é o trabalho "L'Autre" (1993), instalação de Catherine Lkam e Louis Fléri. Numa tela de vídeo numa sala escura há uma face construída pelo computador. Sensores desencadeiam transformações da imagem quando o espectador se move pelo lugar: ela pode crescer, diminuir, virar-se, inclinar a cabeça, enfim, "viver". Aqui, a contingência do programa "impede" o público de controlar diretamente a imagem, o que confere um alcance muito maior à interação. Transformado em "interlocutor", o espectador tende a responder às ações do rosto e se vê envolvido numa comunicação "sensível" e muito mais aberta com o ciberespaço (1).
Mas voltemos aos bichos virtuais. E, já que se trata de questionar fronteiras, lembremos o livro "A Arma Impossível", de Philip K. Dick (1965), que propõe uma arma de dominação em massa, inspirada num brinquedo com o mesmo tipo de identificação proposta por estes bichos. Trata-se de um bicho preso num labirinto, cujo "dono" tem à sua disposição dois botões: um que facilita sua saída, outro que dificulta. A estratégia consiste em acionar a capacidade empática do manipulador: no início, ele procura dificultar a vida da vítima, mas acaba se identificando com ela e buscando salvá-la. Para funcionar como arma, o botão simplificador é apenas substituído por um complicador "disfarçado", para fazer com que os jogadores, prisioneiros do seu próprio mecanismo psicológico, não consigam mais parar de jogar.
Serão os bichinhos virtuais um mero entretenimento ou uma espécie de brinquedo estratégico para suprir carências de um novo tipo de "prisioneiro" afetivo?

Nota: 1. Este é o comentário de Ollivier Dyens em "The Emotion of Cyberspace - Art and Cyber-Ecology", in "Leonardo", vol. 27, nº 4, págs. 327-333, 1994.

Stella Senra é ensaísta, autora de "O Último Jornalista - Imagens de Cinema" (Estação Liberdade) e Tiago S. Garcia dos Santos é pesquisador iniciante em biologia molecular da Faculdade de Medicina da USP.

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