São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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In memoriam

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"É no mínimo uma subestimação de minha capacidade analítica e de minha imaginação pensar que diante da 'realidade contemporânea' eu optei por uma aliança oligárquica... capaz de sustentar o Consenso de Washington."
Fernando Henrique Cardoso no Mais! de 10/7/94

1. Três anos depois, um enigma ronda o escritório dos analistas financeiros e a cabeça dos pobres intelectuais tucanos. Por que o presidente Cardoso, no ápice do seu poder, com a inflação "sob controle" e aprovado seu direito à reeleição, resolveu levantar-se do seu sofá predileto e, em tão pouco tempo, fazer e dizer tantas e tão desastrosas besteiras?
A lista é, de fato, grande e bem conhecida, mas algumas são verdadeiras pérolas, que passarão ao anedotário nacional. Entre as coisas que disse, por exemplo, suas declarações de que "não entendia nada sobre a venda da Vale do Rio Doce", feita na hora em que o aval internacional do seu governo estava "por uma Vale"; ou, pior ainda, de que "é mentira dizer que o Real depende das reformas", afirmação feita à revista "Veja", depois de passar três anos condicionando o sucesso do Real e do seu governo à aprovação parlamentar das "reformas constitucionais".
E, entre as coisas que fez, seu comportamento frente ao escândalo Ronivon, impedindo uma CPI parlamentar, enviando o principal acusado para uma peregrinação religiosa e promovendo os demais envolvidos ao Ministério e ao comando político do seu governo; ou sua condução da novela da privatização da Vale do Rio Doce, até o ponto de ver um grupo de "piranhas financeiras" montado às pressas, com o objetivo de "melhorar" o preço de leilão, derrotar o principal grupo privado de São Paulo, sendo ele o primeiro presidente paulista em 50 anos; ou ainda, por último, sua decisão de jantar sigilosamente com Paulo Maluf, com o que conseguiu ao mesmo tempo humilhar seus velhos aliados e amigos e colocar uma pá de cal sobre os últimos vestígios ideológicos sobre os quais se sustentava sua imagem pública.
2. Como explicar este aparente descontrole presidencial, perguntam-se os analistas financeiros, preocupados com a questão da sua credibilidade, e os intelectuais tucanos, preocupados com a destruição precoce da sua imagem social-democrata? Não é muito difícil, mas é indispensável voltar ao início de tudo, o Plano Real.
Hoje, todo mundo já entendeu o segredo de polichinelo sobre o qual está se sustentando a estabilidade da moeda, e está cansado de saber que ela acabou prisioneira de si mesma e é incompatível com o crescimento econômico. Isto já são favas contadas. O importante, agora, três anos depois, é explicar por que o plano também vai aprisionando o presidente, ao mesmo tempo em que vai decepcionando a sociedade de forma lenta, mas implacável, sem que se possa prever até onde irá essa dissonância, apesar de que é possível estabelecer algumas projeções a partir dos números oficiais.
É desnecessário repetir todos estes números com que o governo doura a realidade e os economistas confundem a opinião pública. O que é importante reter não são seus valores absolutos ou relativos atuais, é a velocidade da expansão dos desequilíbrios macroeconômicos que acompanham o plano de estabilização e, sobretudo, que não há perspectivas de solução, na medida em que os fatores que provocam os desequilíbrios são os mesmos que conseguem manter a moeda estabilizada.
Esta circularidade perversa é que se transformou na principal pedra no caminho do governo e, por isso, é o que explica a atual estratégia eleitoral do presidente Cardoso. Para fechar suas contas, o Brasil vem recorrendo, mais uma vez, ao endividamento externo, e, hoje, governo e empresários já pedalam de novo em uma ciranda que vai empurrando o financiamento da economia na direção do dinheiro internacional, abundante e barato neste momento.
O problema reside em que esta festa de pegar dinheiro no exterior não apenas pode reproduzir, no médio prazo, o que já aconteceu com o Brasil nos anos 70/80, mas, no curto prazo, ela aprisiona, cada vez mais, a política cambial do governo. Só os desinformados ainda não compreenderam que, neste momento, qualquer alteração cambial já produzirá perdas patrimoniais gigantescas para o governo, as empresas e as famílias. Mas, além disso, o que é mais sério, do ponto de vista eleitoral, é que, como resultado do impasse a que chegou o plano, cresce a olhos vistos o descontentamento social dos brasileiros.
Depois da euforia inicial, que reuniu numa mesma alegria os consumidores de frango e os de BMWs, começam a aparecer as contas na forma das perdas dos salários congelados diante dos 68,89% de inflação acumulada, da expansão do desemprego nas grandes cidades, da escassez crescente de crédito para os pequenos empresários, da deterioração progressiva dos serviços públicos e da decomposição explícita da infra-estrutura de energia, de transporte e de saúde, que tomou décadas para ser construída.
3. Este é o cenário em que se dará a próxima eleição presidencial. E, no momento, o presidente dá claros sinais de que, com a aprovação do direito à reeleição e a venda da Vale do Rio Doce, considera encerrado, de fato, o seu primeiro mandato.
Além disso, já foi informado pelos seus economistas de que será muito difícil repetir mais uma "bolha de crescimento" do consumo para efeitos eleitorais em 1998. E, por fim, o presidente demonstra saber que, ao contrário dos seus economistas e ideólogos, ele considera que a afirmação de que "o Real depende das reformas é uma mentira".
Olhando a conjuntura deste ângulo, as coisas ficam mais claras, tanto a confusão em que anda metido o presidente, como a intenção de suas últimas "movidas" políticas. Seu objetivo eleitoral é um só, e é muito óbvio: reproduzir o cenário de guerra santa em que os insatisfeitos possam ser satanizados como adversários da estabilização e inimigos do capitalismo.
Diante da ameaça eleitoral de uma candidatura conservadora que se apóie na face anti-social do seu governo, o presidente foi obrigado a abandonar as inibições e algumas de suas lealdades mais antigas para poder aprofundar e consolidar os seus laços políticos com as forças de direita. Daí sua frase um tanto escandalosa: "Quero fazer aliança com ACM, Íris Rezende, Maluf, Amazonino, Ronivon, até o infinito, se possível e necessário", assim como sua mais recente aproximação de Paulo Maluf.
Por outro lado, como é natural, quanto mais avança nesta direção, mais agressivo fica com seus antigos aliados de esquerda que não o compreendem. Por aí passa a sua obsessão e agressividade com os intelectuais de oposição, como sua recente briga com a Igreja Católica e sua permanente irritação com os sem-terra. Este é o tipo de gente que ele precisaria que desaparecesse de sua frente por alguns anos.
4. Como candidato único das forças conservadoras, contando com o apoio de quase toda a imprensa e dos governadores, será difícil para o presidente Cardoso conseguir não reeleger-se. O problema se complicará, entretanto, a partir da sua eventual reeleição. Com ela, estará dada automaticamente a largada para a corrida presidencial de 2002 e, mantendo-se as atuais projeções econômicas, os desequilíbrios externos e os custos sociais serão crescentes, enquanto a governabilidade fiscal deverá ser decrescente durante seu segundo mandato. Neste contexto, sem qualquer programa de governo factível, corre o mesmo perigo que seus colegas Menem e Fujimori, que, depois de vitoriosas reeleições, assistem impotentes à queda livre de suas popularidades.
Os economistas do presidente têm sido claros nos seus artigos de jornal: não há perspectiva de "crescimento sustentado" da economia brasileira antes de 2006, e foi o próprio presidente quem afirmou recentemente que não há como melhorar as condições sociais do país antes de 2010. Se estas previsões oficiais forem verdadeiras, então a conclusão é uma só: a partir de 1998, os brasileiros viverão um longo período de provações sociais e econômicas, tendo pela frente o fantasma dos seus vizinhos, como a Argentina, que enfrenta hoje níveis de desemprego de até 50% em algumas províncias, completamente desgovernadas e entregues a uma espécie de guerra civil lenta e progressiva. Análogo ao que ocorreria conosco se a "doença" de Alagoas se transformasse numa epidemia e atingisse, por exemplo, estados da importância do Rio e de Minas Gerais, numa progressão que seria fatal, mesmo que não ocorresse nenhuma crise econômica internacional.
5. O presidente, contudo, está convencido de que este tempo de provação será também o tempo da travessia para a "terra prometida". Será a hora e a vez do reconhecimento de sua verdadeira e grande obra, que ele tem chamado, de tempos em tempos, de "revolução silenciosa".
Em que consistirá esta revolução, e por que será que ela é tão silenciosa?
Não consta que o presidente já tenha desenvolvido o seu conceito em alguma conferência ou entrevista conhecida da opinião pública. Deve-se supor que não esteja dando apenas um novo nome ao "mix" de estabilização e reformas liberais que já se chamou de "Consenso de Washington". O mais provável é que a "revolução silenciosa" do presidente refira-se ao nascimento subterrâneo do novo modelo de capitalismo com que sonha toda vez que se refere ao fim da "era varguista".
Neste caso, tudo indica que o presidente esteja pensando em duas coisas: 1) primeiro, que a partir de seu segundo mandato, ocorrerá uma multiplicação "asiática" dos investimentos estrangeiros no Brasil; 2) e, segundo, que o gigantesco processo de recomposição patrimonial e de transferência de riqueza que está em curso no país será capaz de redesenhar o mapa sociológico das classes sociais e o mapa político das elites brasileiras.
Mas sobre que base real assenta-se hoje este sonho presidencial? Com toda certeza, no pequeno aumento e recomposição dos investimentos diretos estrangeiros ocorridos no último ano. Mas, sobretudo, no efeito desejado ou esperado dos processos de privatizações e de centralização de capital que avançam hoje, aceleradamente, tanto na indústria como na agricultura brasileiras. Depois da fase "heróica" ou ideológica do programa iniciado pelo presidente Collor de Mello e encerrada com o fim dos monopólios estatais e a venda da Vale do Rio Doce, o processo das privatizações entrará agora numa segunda etapa, menos ruidosa, mas muito mais importante do ponto de vista das relações entre os capitais nacionais e internacionais e, sobretudo, das relações entre as várias facções regionais do poder econômico e político brasileiros.
Estarão em jogo, num curtíssimo espaço de tempo, transferências de recursos de poder sem precedentes na história brasileira: segundo o governo, trocarão de mãos, nos próximos três anos, cerca de US$ 80 bilhões a US$ 90 bilhões, sem contar com o valor das fusões e aquisições que venham a ocorrer no mesmo período. Na prática, se tratará do maior esforço já feito pelo Estado com vistas ao fortalecimento do que se chamou, em tempos de 2º PND, a "pata fraca" do capitalismo brasileiro.
6. Esta "recomposição patrimonial" não deverá produzir nenhuma mudança significativa na hierarquia tradicional dos nossos grandes grupos econômicos, que sairão apenas mais concentrados e poderosos. Mas não cabe dúvidas de que isto acabará provocando um impacto decisivo no cenário político nacional.
No caso do setor de telecomunicação, que correr por conta do PSDB, além de envolver uma quantidade significativa de bilhões de dólares, ela repassará o monopólio estatal para não mais do que cinco ou seis grandes consórcios que, além de repartirem o controle dos mercados regionais da banda B, hierarquizarão o poder e redesenharão as zonas de influência dos grandes grupos do jornalismo brasileiro, que poderão monopolizar, simultaneamente, a produção dos conteúdos e o controle dos seus veículos, compartindo concessões que os comprometem, de partida e inevitavelmente, com o novo establishment do poder político, em nível nacional e regional.
No caso da privatização do setor elétrico, por outro lado, que corre por conta do PFL, os negócios também serão bilionários, mas haverá lugar para um número maior de composições políticas e econômica regionais. O BNDES terá um papel decisivo e haverá margem para uma regionalização dos consórcios, de maneira a fortalecer ou recompor, quando for o caso, os diferentes grupos regionais de poder econômico. Neste sentido, a "revolução silenciosa" do presidente Cardoso deve, de fato, redesenhar o mapa da riqueza e da distribuição/composição regional das elites econômicas brasileiras. E não é improvável que, mais a longo prazo, contribua para a redefinição também do mapa das elites políticas regionais e das coalizões de poder nacionais.
Como resultado final, tem razão o presidente, deve sair de cena ou perder importância o "partido rodoviário" dos velhos empreiteiros, de que nos falava Vargas, devendo crescer a importância do novíssimo "partido financeiro" dos jovens yuppies, que são a cabeça pensante do governo Cardoso.
7. Mas, à parte esta "dança das cadeiras" no mundo das elites, a "revolução silenciosa" do presidente terá ou não capacidade de gerar um novo modelo de capitalismo e levar o país a uma era de crescimento econômico sustentado com maior igualdade social?
A resposta, neste caso, é não. Até agora, se o Estado já foi retirado da condição desenvolvimentista de locomotiva do crescimento, todos os demais indícios são de que o novo modelo emergente de "capitalismo liberal" não só manterá como aprofundará as características mais perversas e as fragilidades mais notórias do modelo que entrou em crise nos anos 80. Neste sentido, há que desfazer de imediato qualquer ilusão: o Estado, apesar de falido, continua sendo absolutamente decisivo para tudo o que está ocorrendo com o capital privado. O próprio "programa de privatizações", como já vimos, transformou-se numa caricatura da velha política industrial do 2º PND, enquanto a guerra fiscal dos Estados transformou-se na mais nova forma de incentivo e proteção dos capitais internacionais. Mas o que é ainda mais importante: o novo modelo mantém exatamente o mesmo padrão de financiamento anterior, só que agora com o endividamento externo se dando em condições nacionais e internacionais mais instáveis do que as dos anos 70.
Por fim, não há rigorosamente nenhum precedente histórico nem argumento econômico sobre o qual apoiar a esperança de que os investimentos estrangeiros, além de compensarem os desequilíbrios da nossa balança de pagamentos, possam sustentar, ao mesmo tempo, uma onda de investimentos "asiáticos", capazes de substituir o Estado no comando do crescimento e na expansão das exportações brasileiras.
Querer ou esperar tudo isto é muito mais do que um "wishfull thinking"; é um seriíssimo erro de cálculo. Isto, se não for apenas um engodo, porque o modelo que está se desenhando no horizonte da revolução presidencial carece completamente de dinamismo, é incapaz de criar os empregos necessários e, pior ainda, é incapaz também de criar e manter as expectativas de mobilidade social indispensáveis à manutenção da estabilidade política de uma sociedade desigual como a brasileira.
Tudo indica, portanto, que, se houver um dia uma "era Cardoso", ela deverá ampliar a desigualdade e diminuir a proteção social da "era Vargas". Quanto à continuação ou não do autoritarismo daqueles tempos, já veremos.
8. Em síntese, o presidente e o Real parecem ter assegurados uma carência de três anos, garantida pelas privatizações. Mas, a partir daí, à "revolução silenciosa" do presidente Cardoso não oferece nada que possa resolver os problemas com que ele e o país se enfrentarão a partir de 1998. Assim, mesmo se seu eventual segundo mandato for um fracasso, sempre lhe restará a alternativa de tentar devolver o poder aos seus velhos donos.
Neste caso, o mais provável é que os seus pequenos "moedeiros falsos" voltem, como de costume, para os seus bancos e gabinetes internacionais e que os seus intelectuais tucanos saiam da boa sombra sob a qual, segundo o presidente, ficam "roçando o poder". Quem sabe, até voltem a pensar e descubram finalmente em que consistiu a sua "atualização do capitalismo brasileiro". Não muito mais do que uma gigantesca privatização de riquezas, que o ministro Delfim Netto provavelmente chamaria, com sua proverbial capacidade de síntese, "de uma mera trasferência do empresariado de uma para a outra teta do Estado".
Por enquanto, contudo, os intelectuais tucanos não precisam se assustar e podem dormir em paz, seguros de que, mesmo sem rupturas no mandarinato tucano, não haverá, tampouco, nenhuma virada à esquerda do pendulo FHC antes de 2010.
Com relação aos analistas financeiros, estes sim podem ficar completamente tranquilos, porque o presidente -pelo que fez nestes últimos meses- deu claras demonstrações de que já assimilou melhor do que ninguém a idéia que no início lhe incomodava tanto: "Que de fato o Plano Real não foi concedido para elegê-lo, ele é que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização e reformas preconizadas pela 'comunidade financeira' internacional" (J.L. Fiori, Mais!, 03/7/94).

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