São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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O mundo pós-literário

IVAN IZQUIERDO

Alguém definiu a linguagem como um conjunto de sons, grunhidos e outros barulhos, com os quais designamos metáforas. A humana é a única espécie que utiliza a linguagem dessa maneira. Os demais animais reconhecem as metáforas: um cachorro late para sua imagem no espelho porque acha que é outro cachorro. Mas não são capazes de traduzi-las em frases, poemas, contos, ensaios ou canções.
Por meio da linguagem também inventamos metáforas; aquilo que chamamos idéias ou conceitos não passa de conjuntos de metáforas cuja existência é indemonstrável fora das palavras. Exemplos ilustres que guiaram a vida da humanidade são "alma", "deus", "vida", "morte" ou até essa gloriosa e desesperada contradição em termos: "vida depois da morte". Pelas palavras nos comunicamos, amamos, odiamos, sofremos, pensamos -ou pensamos que pensamos; enfim: somos humanos.
Eric Hobsbawm disse que o século 20 já acabou: se estendeu desde 1914, fim da velha ordem européia, até 1991, fim do bloco comunista. Estamos já, então, em outro século: não será preciso esperar o mágico número 2001 (outro artifício da linguagem) para vê-lo.
O século 20, que já passou, caracterizou-se pela profusão de utopias que chamamos ideologias; outra metáfora, esta tão terrível que acabou matando 200 milhões de pessoas.
As ideologias foram um uso excessivo e extremo das palavras, uma forma coletiva dos delírios sistematizados. Em nome de algumas delas, exerceu-se a crueldade e causaram-se angústia, terror e sofrimento em escala nunca vista.
Hoje terminaram as ideologias: ninguém acredita seriamente que o socialismo, o nacional-socialismo, o estruturalismo, a psicanálise ou o dadaísmo possam influenciar por conta própria o mundo em que vivemos.
O mundo incorporou algumas idéias desses delírios a seu dia-a-dia, às vezes porque eram boas, outras vezes por reação: aceitamos o ego, o inconsciente, a jornada de oito horas e as férias; rejeitamos visceralmente qualquer forma de repressão ou censura.
Mas, junto com o fim das ideologias, houve uma súbita desvalorização das palavras e, com ela, da linguagem. De repente, o idílico "comunismo" sonhado por Marx passou a designar regimes tão horrendos como os de Stálin, Pol Pot ou Kim Il Sung. A palavra se desvalorizou tanto que os EUA passaram a saudar a China, trabalho escravo e Tiananmen incluídos, como exemplo de capitalismo a ser seguido. E Margaret Thatcher foi faceiríssima assistir aos festejos da capitulação de Hong Kong.
Por falar nela, a palavra "neoliberalismo" passou a designar o que, com justiça, denominava-se "capitalismo selvagem" poucos anos atrás. Adam Smith deve estar se retorcendo no túmulo. As palavras "economia aberta" aplicam-se a regimes tão fechados como os de Japão ou Brasil, onde, sem subsídio do Estado, a maioria dos bancos e indústrias não funciona. Os EUA praticam o protecionismo mais deslavado em nome da "economia aberta".
Hoje, quem comete crimes hediondos diz depois que cometeu um "erro". "Errei": portanto, preciso ser perdoado; se possível, na hora, pela TV. Isso falou o filho do ministro que atropelou um operário, os filhinhos de papai que queimaram um índio, o homem que mandou esfaquear os pais na cama, os assassinos da Candelária etc. "Erraram".
Chamamos "inteligência" à capacidade de manejar muitos dados que possuem os computadores. "Pesquisa" à indagação sobre em quem você votaria se as eleições fossem hoje. "Flexibilização" à perda de direitos. "Fazer o amor" ao fazer de conta que se faz amor (o amor não se faz: existe ou não existe). "Deus" a alguém feito à nossa semelhança. E assim por diante.
Enfim: neste novo século, que, ao que parece, já começou, as palavras já não designam metáforas: designam qualquer coisa. Será por isso que a literatura, que acompanhou a humanidade durante tantos séculos, de repente passou a segundo ou a quinto plano. Publicam-se (e festejam-se ruidosamente) coleções de frases ou palavras sem sentido, chamando-as "poemas". Um autor publica hoje um ensaio ou um livro defendendo posições justamente contrárias às que ele mesmo postulara um ou dois anos ou meses atrás.
A velha arte de contar histórias, que Hawthorne, Chesterton, Balzac, as "Mil e Uma Noites" ou Borges levaram à apoteose, parece esquecida: as editoras publicam teses de mestrado de sociologia ou psicologia, não mais contos ou romances. Ou "collages" mais ou menos rimbombantes, como os de Paulo Coelho, que, claro, vende muito mais do que qualquer criador de literatura: nos acostumaram a isso, pelo "marketing" (outra palavra daquelas).
Se essa é a nova ordem mundial, será preciso, urgente, corrigi-la. Podemos, é claro, e melhor será, viver sem ideologias. Mas não sem palavras; não sem literatura. Não sem um uso sensato das linguagens e das metáforas a que elas se referem.

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