São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Duros na queda

ADRIANA VIEIRA; ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA

Despencando do céu ou resistindo a assassinos, eles sobreviveram a catástrofes dignas de Hollywood
"O vento era tão orte que achamos que o avião partiria ao meio. Várias pessoas sangravam, havia pânico, mas ninguém gritava"
Kelly de Souza, 16
POR ADRIANA VIEIRA E ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
"Passa reto a morte, que eu ainda estou forte." A mandinga, que os supersticiosos costumam repetir quando sentem um calafrio, serviria perfeitamente de epígrafe para as histórias de Sandra Junqueira Franco, Sidney Queiroz, Altair Ramos, Antônio Darci Pannocchia e Daniel Nou Falcão. E também, desde quarta-feira passada, para os 54 passageiros que sobreviveram ao vôo 283 do Fokker-100 da TAM.
Suas tragédias são cinematográficas, de fazer inveja a qualquer Bruce Willis (da série "Duro de Matar"): Sandra resistiu a 194 tesouradas, Sidney passou 17 dias com uma faca de 13 cm enterrada na testa, Altair levou um raio na cabeça, Antônio caiu de avião na Floresta Amazônica e Daniel sofreu duas quedas: dentro de um bueiro de 10 metros e, um ano depois, de um paraglider.
As cenas protagonizadas pelos passageiros da TAM também poderiam estar em qualquer um dos filmes "Aeroporto": rombo na fuselagem, um homem tragado pelo vento, gritos e rezas. "Vi uma menina com cortes no rosto provocados pelo vento forte. Não quis demonstrar pânico para a minha filha, mas estava apavorada", diz a lojista Amélia Rosa da Silva, 39, que viajava na quinta fileira. Essa foi a segunda "aventura" de Amélia: há cinco anos, ela levou um tiro na perna durante um assalto à sua loja, em Cariacica, cidade perto de Vila Velha (ES).
É difícil explicar, mesmo para médicos e policiais, que lidam com vítimas diariamente, como algumas pessoas conseguem sobreviver a tais catástrofes.
Em primeiro lugar, todos tiveram sorte, depois de terem sofrido um tremendo azar. Se a faca de Sidney estivesse milímetros mais para frente, teria cortado as veias que irrigam o cérebro, e ele estaria morto. Daniel sobreviveu a uma tempestade no seu primeiro vôo de paraglider, enquanto seu experiente instrutor morreu.
Mas, para além da sorte, os "duros na queda" têm muita garra, vontade de viver, o que dá força na hora do desespero. Ensanguentada, com a jugular cortada, Sandra teve a brilhante idéia de se fingir de morta para enganar seu agressor. Altair voltou a trabalhar três semanas depois do raio, surpreendendo médicos que não sabiam nem como tratá-lo. Antônio manteve a calma, mesmo depois de ter passado três dias na selva e ter encontrado uma epidemia de lepra no hospital em que seria socorrido.
"Não sei se existem pessoas mais ou menos resistentes. Tem gente que sofre uma queda de três metros e não acontece nada. Depois, escorrega na casca de banana e morre. No tratamento, tem gente que se recupera muito melhor que outras. É difícil entender essas coisas. Como médico, sempre busco uma razão científica para esses fenômenos, mas, de vez em quando, temos de dar a mão à palmatória. A ciência não dá conta", diz Moisés Cohen, 43, um dos médicos que atendeu Altair Ramos.
Após o choque do acidente, o lado psicológico influi muito. "Um estado emocional favorável -vontade de viver e apoio da família- facilita a recuperação. Já um longo período depressivo, por exemplo, acaba tornando o sistema imunológico menos eficiente, prejudicando a cura ou a reabilitação, além de facilitar o aparecimento de outras doenças", explica Ana Virgínia Araújo, psicóloga-chefe da Divisão de Medicina de Reabilitação do Hospital das Clínicas.
Gente que driblou a morte, os entrevistados dessa reportagem são unânimes em dizer que se sentem "renascidos". Nas palavras de Sandra Franco, estão "fazendo hora extra no mundo" e se sentem privilegiados por isso. O preparador Altair Ramos, o do raio, não dá mais importância às coisas materiais. O advogado Antônio Pannacchoia, que guarda uma foto do avião destroçado no seu escritório, percebeu no acidente o quanto "a natureza é perfeita: ela mostra como somos frágeis, mas multiplica nossas forças nessas horas".
O estudante Daniel Falcão mudou completamente, começou a ler mais e a dar valor a pequenas coisas da vida. No hospital, recuperando-se do segundo acidente, diz que inventou um lema: "Feliz é quem consegue ir ao banheiro sozinho e dormir de lado".
A lojista Amélia Rosa da Silva dizia, depois da aterrissagem em São Paulo, que agora vai "gozar mais a vida". "Antes trabalhava muito, não aproveitava. Agora, vou viver mais intensamente. O futuro, a gente não sabe se vai ter."

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