São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 1997
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As origens do consórcio entre saber e poder

ELOI FERNÁNDEZ Y FERNÁNDEZ

Com a Revolução Científica do século 17, inaugurou-se nova etapa nas relações entre o saber e o poder: o poder de saber. Desde esse momento instalou-se também uma nova fase nas esferas política e econômica; uma fase promovida igualmente por diversos outros acontecimentos correlacionados.
Com as navegações e as descobertas de novos continentes e novas riquezas, começaram os grandes impérios coloniais e a edificação daquilo que Immanuel Wallerstein denominou "economia-mundo". Assim estabeleceu-se uma interdependência entre inúmeras partes do globo terrestre e, simultaneamente, entre os diversos perfis da sociedade européia -do psicossocial ao político, do religioso ao econômico, do ético ao estético, do científico ao jurídico, do produtivo ao metafísico, enfim, do material ao cultural. Uma relação que doravante expandiria constante e inexoravelmente suas fronteiras para uma geografia mais ampla e complexa, desenhando novas cartografias para os mundos físico e mental.
O processo mercantil dependia, por exemplo, da conquista, da extração e do transporte das riquezas do mundo não-mediterrâneo. As navegações transatlânticas exigiam cálculos astronômicos, um relógio que ainda não existia; apoiavam-se na tábua de logaritmos, nos instrumentos náuticos, no traçado de quilhas para navios maiores, mais seguros e ligeiros; as longas viagens tornavam-se ainda mais longas sem a correção do desvio da bússola.
Nesses tempos, dependia-se de uma metalurgia incipiente, do artesão em suas corporações de ofício produzindo mecanismos de maior precisão, de estudos de resistência de materiais e de uma correta descrição de movimentos, inclusive os balísticos. Uma física nova se impunha, uma outra ciência mecânica para a estática e para a dinâmica.
Dependia-se igualmente de uma nova "antropologia", definindo contornos jurídicos mais adequados para as relações políticas e econômicas. Necessitava-se de um arsenal de conhecimentos estratégicos na arte política de colonizar seres "incivilizados", europeizando-os segundo uma ética da superioridade e da desigualdade, da guerra justa e do bom selvagem. Dessa forma, prática converge com teoria, e a nascente ciência predispõe-se à política.
Aí e assim inaugura-se a direção para uma uniformização global e de lutas na hegemonização capitalista. Desde então, o evolver civilizacional presenciou um processo cumulativo inabalável e irreversível; viu novas etapas se justaporem, acentuando a relação entre o conhecimento tecnocientífico e os horizontes socioeconômicos dos povos.
Dessa forma, a cultura ocidental mundializou-se, expandiu-se por mares e terras, difundindo um modo de apropriação da natureza pelo homem e do homem pelo próprio homem.
Olhando do hoje, retrospectivamente, para o desenrolar subsequente desse processo, observa-se o impacto de algumas etapas posteriores, já ultrapassadas, que reafirmaram o consórcio entre saber politizado e poder cientificizado, sempre eventos internacionalizados. Nesse périplo, ganham destaque a Revolução Industrial, a industrialização da química, as novas universidades alemãs do século 19, o uso diversificado da energia elétrica etc.
Daí evoluirá a fantástica criação de inúmeros artefatos, "julio-verneanamente" previsíveis: a locomotiva, o telégrafo, o telefone, o automóvel, o submarino, o rádio, o avião, o aparelho de raios X, a linha de montagem e uma nova organização do trabalho.
No início deste século, entramos em uma nova "era de invenções", ultrapassando aquela, mais barroca, a "era das grandes descobertas". Os complexos aparatos mecânicos de ontem e a sofisticação dos antigos mecanismos de alta precisão herdados da Revolução Científica mostram-se os protótipos simplificados dos servomecanismos do mundo atual e contrapõem-se às máquinas que constroem outras.
Nesta nossa metade do século 20, atravessamos o umbral de mais uma "revolução" redefinindo o mundo contemporâneo: do estágio cibernético do desenvolvimento tecnocientífico dos anos 50 à cultura de massa, à televisão, às redes de teleinformática, às alterações comportamentais, ao jogo acirrado das ideologias etc. Enfim, nos tornamos internacionalizados e informatizados ou, como dizem alguns, ingressamos na sociedade pós-industrial e na cultura pós-moderna.
Evidentemente, a globalização constitui um fato, tornou-se realidade. Não se pretende desafiar tal fenômeno histórico. Não é essa a questão, mas se trata -sim- de compreendê-la. As dúvidas e o assombro estão na inevitabilidade de uma única opção, a ser abraçada incondicionalmente pelos países do Sul e sobre cujas possíveis nuances se evita refletir criticamente.
Ora, a globalização nada mais é que um produto da metalurgia da história, que se encontra na forja, não é uma obra acabada, ainda está em construção. Mas quais as características mais substantivas da globalização que permitem a nós, brasileiros, alcançarmos uma nova inteligibilidade dos tempos presentes e neles nos situarmos?
Refletindo sobre nossa inserção na divisão global do trabalho, devemos estar atentos à nova ordem mundial, sem esquecer que o alinhamento à questão global solicita uma convergência com o interesse local. Em qualquer processo de integração ativa há que cuidar desses interesses respondendo ao alerta: a que restringiremos nossa brasilidade.
Para o Brasil há questões desafiadoras, sob o manto homogeneizador do ritual globalista. A forma concentradora de renda, em escala mundial, pela qual esse fenômeno também se apresenta, é talvez a mais danosa aos interesses dos países em desenvolvimento. Uma concentração econômica que é favorecida por outra e da qual se torna dependente: a concentração do saber.
Nesse círculo, o controle sobre essa segunda concentração -a do saber- garante um instrumento de largo poder. Afinal, não há produção de riquezas sem o necessário aparato científico e tecnológico; e de tecnologia em regime de mudança contínua.

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