São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Um novo gênero de auto-ajuda

PEDRO PUNTONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um fenômeno. No país dos sem-história, em quinto lugar entre os livros de não-ficção mais vendidos, ombreando com um "guia básico de modas" e com um outro de "sabedoria simples", está um almanaque de história do Brasil. Prometendo ao leitor/usuário uma agradável turnê por temas e assuntos de nosso passado, e em duas versões (CD-ROM ou livro), a "Viagem pela História do Brasil" é obra coletiva dirigida por Jorge Caldeira e escrita e concebida a várias mãos.
Em belíssima edição da Companhia das Letras, com financiamento da Lei de Incentivo à Cultura, o livro, assim como o CD, oferece uma obra inteiramente em cores, com notável projeto gráfico e acurado conceito de multimídia. Em papel ou em meio magnético, trata-se de uma ambiciosa empreitada que quer mostrar "cada aspecto da formação do país e de sua sociedade", objetivando, por meio de uma interpretação inovadora, contribuir "para ajudar cada brasileiro a definir suas opções próprias para o futuro".
Basta ter prestado atenção às aulas de história ou apenas, como interessado, ter lido alguns dos livros (que, imaginamos, a equipe de autores se utilizou para compilar esta história do Brasil) para se notar assustado a enorme quantidade de imprecisões e erros espalhados ao longo do texto. Para tornar as coisas mais difíceis, nas 352 páginas do livro, ou mesmo nas 1.500 "páginas virtuais" do CD, não há nem sequer uma referência bibliográfica, uma sugestão de leitura, uma pequena alusão à origem das informações e temas ali tratados.
Ora, depois de consultarem "dezenas de milhares de livros e documentos", valeria a pena indicar o caminho das pedras ao leitor mais curioso ou ao especialista embasbacado com as novidades interpretativas. Ou talvez, mas singelamente, apontar algumas obras de referência importantes. A cobrança pode parecer chatice, mas não é. Pode-se notar que, quando imperativo, pelas alterações das regras do direito autoral vindas com a nova Constituição, as referências às fontes iconográficas foram feitas com certa organicidade. Quase todas as 2.000 imagens do CD e as cerca de 400 do livro são identificadas, de um modo ou de outro, ao final. Com exceção dos documentos transcritos, quando se trata das referências do texto: nadinha! O princípio é defender os "desejos" do leitor, e, nesta perspectiva, nada parece ser mais chato do que entender como as coisas foram feitas, pensadas, escritas... pelos historiadores e sociólogos.
Como vivemos num mundo "plug-and-play", a própria linguagem do CD, imitada de maneira mais pobre pelo livro, oferece essa facilidade, pois permite ao usuário "tanto uma visão sintética de cada período quanto uma abordagem mais analítica dos assuntos que queira conhecer melhor -sem precisar se deter onde não há desejo". Assim, o leitor/cidadão, transformado agora em usuário/consumidor, pode, quase que literalmente, durante sua viagem interessante, pegar o que lhe interessa (e apenas isso) das prateleiras do supermercado histórico.
Mas vamos aos fatos. Responda rápido: qual a fórmula química do sal de cozinha? Se você não sabe, duas são as soluções. Pergunte ao seu filho (se ele estiver em idade escolar) ou procure em um manual de química. Se a resposta não for NaCl, você errou. Pois então, responda quando morreu, ou desapareceu, o rei de Portugal, d. Sebastião. Segundo a página 43 do "Viagem...", no ano de 1580; mas, de acordo com as "dezenas de milhares de livros e documentos", em 1578. Como morreu Marighela, o líder guerrilheiro da ALN? Segundo a página 326, "em uma sessão de tortura" e depois levado para uma "rua de São Paulo onde foi simulada sua morte durante um tiroteio". Não obstante, testemunhos e historiadores nos contam que naquele triste dia 4 de novembro de 1969, dia de Corinthians e Santos no Pacaembu, Marighela (que, na época, usava, por galhofa, o codinome de Maluf, então prefeito nomeado) foi emboscado e fuzilado dentro de um fusca azul na alameda Casa Branca. Qual foi o primeiro comício das diretas? De acordo com a "Viagem...", em 25 de janeiro de 1984, na praça da Sé, e organizado por Montoro. Você se lembra disso? De duas, uma: ou esses são exemplos, entre outros, de "circunstâncias" erroneamente compiladas pela equipe ou estamos mesmo diante de uma novidade.
Porém, a embocadura dessa história, no miúdo, é extremamente tradicional. Apenas com um ou outros acertos mais novidadeiros, no caso do Brasil holandês, por exemplo, onde sentimos a presença (mal lida) de Charles R. Boxer e de Evaldo Cabral de Mello, o encadeamento das análises e das soluções de "circunstâncias" são banais. Nada do que não se encontre num manual para a primeira série.
A presença dos povos indígenas, confinados no pretérito, generalizados ao extremo ("as tribos organizavam-se segundo sistemas de parentesco", diz a página 14, para infortúnio do leitor), caracterizados como gentis-homens distribuindo mulheres aos brancos em troca de instrumentos de ferro, é realmente inadmissível. O homem do povo, "o cidadão comum", que seria o fautor de nossa formação flexível, tampouco está presente.
Para se ter uma idéia, das 128 biografias do CD, não há nenhum Zumbi, Antônio Conselheiro ou algo que o valha, e apenas 6 são de mulheres: Brites de Albuquerque, mulher de Duarte Coelho, e as reais dona Maria 1ª, a "devassa", dona Carlota Joaquina, dona Leopoldina, dona Amélia e princesa Isabel, que, aproveitando o desânimo do pai, num arroubo voluntarista ("... mostrou que o governo podia agir quando queria", pág. 221), teria assinado a lei Áurea.
Mas temos de concordar com um dos autores. Caldeira, em entrevista recente a um programa de televisão, resolveu que, na verdade, pequenas imprecisões são detalhes e o que importa é o conjunto, a interpretação inovadora de nossa história. Nisto estou em perfeita concordância. Na verdade, o livro/CD não se pretende mesmo um manual, tampouco um dicionário histórico. Por detrás dos inúmeros verbetes, leituras, análises, sons e imagens, quer desfilar uma interpretação particular de nosso desenvolvimento.
Para Jorge Caldeira e Sergio Goes de Paula, que assinam um texto interpretativo que aparece somente na versão CD, os fundamentos da nação brasileira, "que moldam a identidade de seu povo, definindo seus costumes, instituições, estabelecendo o modo pelo qual se relaciona com as outras nações e absorve as tendências dominantes em cada momento", seriam quatro: a capacidade de "adaptação", a "escravidão", a "unidade, territorial, linguística e cultural" e, por fim, "a busca de uma conciliação entre desenvolvimento e democracia".
Num arremedo de teoria do Brasil, os autores misturam soluções explicativas que mais formulam uma ideologia pós-tucana de fácil consumo do que qualquer visão inovadora. Num arroubo populista, a conversa é para mostrar que, como já foi dito, apesar das elites e dos intelectuais insistirem nos aspectos negativos de nossa formação nacional, o Brasil é um país de imenso futuro e que estamos, por nossas características de flexibilidade e adaptabilidade, preparados para o "novo ciclo que se inicia". Somos "um povo globalizado tentando achar seu lugar num mundo globalizado, em meio a instituições ainda marcadas pelo predomínio de interesses particulares", dizem.
Em suma, uma história com final feliz, positiva e antidepressiva. Mas, vale lembrar, com Marc Bloch, "que os exploradores do passado não são homens livres, o passado é seu tirano". O verdadeiro conhecimento de nossa formação e, portanto, de nosso lugar no mundo depende de um esforço que se encontra alhures, nas regras de um método e na atitude de uma ciência, longe das páginas deste novo gênero de auto-ajuda.

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