São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Os espectros em Tabajara Ruas

PRISCILA FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tabajara Ruas, escritor gaúcho cuja obra tem merecido elogios vigorosos da crítica, acaba de lançar a novela "O Fascínio", escrita em 1996. O protagonista, Bertholino Paes Andrade, um burguês de 48 anos, é dono, em Porto Alegre, de uma consultora de imóveis, que dá sinais de falência.
Descobre-se herdeiro de uma estância em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina. A antiga casa de pedra é rondada por um fantasma, visto apenas pelo empresário e por uma espécie de bruxa, Dona Conchita, e o qual ele acredita ser -ao ouvir os relatos de um escritor, Souza, versado na história do Rio Grande do Sul- de seu bisavô, homônimo, um "caudilhete" que, durante a Guerra dos Federalistas, em 1893, degolara 150 homens em um único dia.
Souza revela que o coronel, maragato, morto pelas tropas legalistas, fora decepado, não tendo recebido enterro e tornando-se vítima, portanto, do mais hediondo dos crimes políticos, a "síndrome de Antígona", com o que ficaria fadado a ser uma "luz mala", uma alma penada.
O encontro com o "letrado" se dá após um dos dois assassinatos (o de uma prostituta e o de um travesti) cometidos por Bertholino como que em transe, nos quais procede à "arte da degola" de maneira análoga à de seu parente. De fato, ele acaba por ser "fascinado" pelos demônios familiares, herdando o passado funesto de crimes e despotismo.
A ambientação da novela indica o clima de solidão e angústia nos pampas, pelo qual os personagens são contaminados. A paisagem é sempre melancólica, abarrotada por mortos insepultos, pelos resquícios fantasmáticos do caudilhismo, do autoritarismo, da barbárie descomedida, do não-civilizado, enfim. O burguês que tem a seu alcance as mercadorias mais sofisticadas do que seria uma civilização moderna e que paga a última prestação de um carro Mitsubishi, cujo ar-condicionado é sempre uma proteção contra o frio desolador, cede ao fascínio das energias mais arcaicas de seu rincão natal.
No entanto essa oposição entre culturas se mostra aparente. O narcisismo de Bertholino, bem como o de sua família, acusa continuidade da tradição. O filho deseja seguir carreira política, e seu discurso é o de um jovem egocêntrico, amoral, orgulhoso da aristocracia de seus antepassados e que promete crueldade semelhante à deles, ainda que menos tosca, pois destila a "suavidade de uma pantera". A desfaçatez de sua classe já é por si só capaz de perversidades sem a possessão diabólica, sem os espectros da fronteira, lugar a um só tempo de mitologias e free shops.
Contudo o método concebido por Ruas desarticula a matéria referida. A platitude da forma desfigura o fundo social, estruturado pela combinação de arcaico e moderno, o que informou talvez o que há de melhor em nossa literatura. A recorrência ao elemento fantástico, a feição de roteiro cinematográfico, a filiação ao romance policial não animam a narrativa, empalidecida com personagens chapados, lugares-comuns (a começar pelo argumento), as descrições, ou marcações, abusivas, embora não matizadas.
A disposição e a adjetivação dos pormenores, tanto no plano descritivo quanto no narrativo, o depauperamento da expressão são de tal ordem que abalam a verossimilhança (a coerência), com o que a obra se descarna, perde em concretude. Em certa altura, a família de Bertholino acha-se reunida na estância com um delegado interessado em comprá-la, enquanto o porta-malas do Mitsubishi guarda o cadáver da segunda vítima do protagonista.
Medina, o policial, estranhando o "sutil cheiro a podre" no ar, aterroriza-se com a atmosfera pesada de crimes. Assim, em uma só página (pág. 125), lemos "algo parecido", "havia algo", "alguma coisa se aproximava", "algo enorme, algo monstruoso e infinitamente perverso se aproximava", de maneira que a tonalidade enigmática, exigida pelo clima de degradação moral (o mau cheiro é da consciência também), vem destituída de modulação, desbastada ao extremo. As comparações, as soluções imagísticas desapontam, como no trecho: "O elevador era de vidro e arrastava-se pelo lado de fora do prédio como uma lagartixa mal-humorada" (pág. 12).
Desse modo, a manipulação dos expedientes estéticos pulveriza a relevância do que está sendo tratado. Talvez ordenasse essa obra, tributária de Erico Verissimo em mais de um aspecto, a intenção de uma "estética anestética", como comenta Antonio Candido no artigo "Erico Verissimo de 30 a 70" ("Recortes") ao referir-se à opção do autor de "Incidente em Antares", ocupado com a sondagem ideológica, em primeiro plano na geração modernista de 1930, por "um estilo não artístico, comparado por ele à roupa do homem bem vestido, que não se nota". Chego a pensar que a falta de palpabilidade das personagens, a reiteração do clichê, por exemplo, poderiam refletir a alienação social que as domina, com saldo positivo para a obra, mas, de fato, o empenho ético acaba por se dispersar na falta de densidade na observação tanto do exterior quanto do interior dos seres humanos, por fim quase espectrais.

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