São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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Euridice e a foragida

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

No início de março, a cena literária dos EUA se defrontou com o que foi julgado por muitos como o novo "escândalo de censura" no tumultuado cenário pós-femimista da nação. Entre os protagonistas, o Congresso do país, uma pequena editora e um romance sobre a vagina que foge do corpo de uma mulher.
Escrito por Euridice -uma grega natural da ilha de Lesbos, na Grécia, doutora em literatura e figura constante nos encontros de grupos que pensam "a situação da mulher"-, "F32" foi originalmente publicado em 1992 pela Black Ice Books.
Fundada em 1974, a editora, desde seu início, procurava fugir do que acreditava ser uma lógica estritamente comercial, apostando na literatura de autores experimentais, gays, lésbicas, qualquer minoria e todos os possíveis -e inimagináveis- militantes da sexualidade.
"F32" fez parte da série Fiction Coletive (FC2), assim como "S&M", de Jeffrey DeShell, e "Mexico Trilogy", escrito por D.N. Stuefloten, entre dezenas de outros títulos, reunidos com o objetivo de representar a mais radical literatura contemporânea norte-americana.
A idéia, com a coleção, era repetir o feito dos primeiros anos da editora: colocar no mercado talentos desconhecidos, abrindo-lhes a rota para a celebridade, como ocorrera antes com Russell Banks ("Affliction") e Donald Barthelme ("Guilty Pleasures"), que pertenceram ao catálogo da Black Ice.
A estratégia teria inteiramente falhado -os livros tiveram distribuição restrita- se um romancista, com o estranho nome de Mark Amerika, não tivesse criado, em 1994, uma revista eletrônica (a "Altx") e colocado parte das obras da Fiction Coletive para serem lidas, on line, pela Internet.
Assim, o número de pessoas que se interessou pelas aventuras da vagina fugitiva e narradora de "F32" se multiplicou. Entre os que a descobriram -e também outros textos- estavam alguns dos senadores norte-americanos.
Os editores foram avisados de que a Black Ice seria investigada pelo Congresso no dia 6 de março de 1997. O motivo: o fato de os livros terem sido publicados com a ajuda do National Endowment for the Arts (NEA), uma instituição governamental responsável pelo incentivo -econômico- às artes.
Segundo a subcomissão responsável pela distribuição das verbas, as obras continham "numerosos e repetidos exemplos de atos e atitudes sexuais, a maioria ofensivos". No meio de tudo, a vagina de Euridice.
"Os homens do Congresso que regulam essa subcomissão decidiram usar nossa editora, que recebe fundos do NEA, como um exemplo do que eles imaginam ser obscenidade", disse Mark Amerika à Folha, acrescentando, em uma conversa por e-mail, que "foi maravilhoso descobrir quantas pessoas em Washington começaram a procurar o nosso site".
Segundo Euridice, seu "F32" é uma parábola -ou fábula- sobre uma mulher, "Ela" é seu nome, alienada pelo sexo. Uma obra extremamente irônica em relação à dicotomia entre alma e corpo imposta pela cultura judaico-cristã, como fala a própria autora.
"O sumo da minha vagina tem um gosto um pouco amargo. É a dieta a que ela vem se submetendo ou alguma alteração genética? Uma pele cresceu ao redor do meu clitóris", Euridice escreve na narrativa fantástica que chamou a atenção do senado de seu país.
"±'F32' é um livro sobre uma vagina foragida, mas tem também uma mensagem feminista. Se parece perigoso, tudo se explica em seu espírito rebelde", disse o editor Ronald Sukenick à Folha, em uma entrevista por telefone.
"Eu publiquei o romance porque ninguém o faria, nenhuma das grandes editoras, agora pertencentes aos grandes conglomerados internacionais, teria publicado 'F32'±".
Sukenick acredita que as acusações feitas pelo Congresso -o rótulo de editor indecente de livros indecorosos- esconde uma motivação maior: "exterminar o National Endowment for the Arts".
"Nossa editora foi concebida há 23 anos em desafio ao 'establishment' e se notabilizou por lançar autores rebeldes e inovadores. O real assunto dessa história, de estarmos agora sob ataque do Congresso, é que a ala conservadora quer matar o NEA, que tem financiado a Black Ice Books".
A mais silenciosa sobre o caso é a própria Euridice. "F32" voltou ao catálogo da editora, mas continua ausente da mídia.
Seu editor nem sabe se ela continua a viver nos EUA, mas diz que ouviu boatos de que prepara agora um livro de ensaios. O telefone de sua casa em Nova York oferece apenas uma monótona mensagem na secretária eletrônica. Agora é ela a fugitiva.

Onde:
O endereço da revista eletrônica Altx é http://www.altx.com/interzones

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