São Paulo, sexta-feira, 25 de julho de 1997
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O senhor do tempo

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem passa pela calçada avista apenas um sobrado amarelo de janelões marrons. Pode julgá-lo um tanto incomum, as cores chamativas destoando da vizinhança pálida, mas dificilmente irá imaginar o que se esconde lá dentro.
O tempo parou no casarão da zona central paulistana. Por 15 cômodos e um extenso quintal de 900 metros quadrados, espalham-se milhares de antiguidades que o Museu do Ipiranga classifica como "excepcionais e de inestimável valor cultural".
São, em grande parte, peças raras, que testemunham o cotidiano dos habitantes de São Paulo, Minas Gerais e Paraná na segunda metade do século 19 e início do 20.
Há roupas, material escolar, artigos de toalete, carruagens, utensílios de cozinha, coroas funerárias, lâmpadas produzidas pelo inventor norte-americano Thomas Edison e aparelhos mecânicos que, embora já característicos do período industrial, dispensam eletricidade: caixas de música, máquinas de escrever, ferros de passar e câmeras fotográficas.
O curioso é que inúmeros objetos, apesar do aspecto envelhecido e da grossa camada de poeira, ainda estão em condições de uso (as engenhocas mecânicas, por exemplo, funcionam perfeitamente).
O Museu do Ipiranga -que pertence à Universidade de São Paulo- descobriu o sobrado em 1992, perdido entre prédios e ocupado por uma única pessoa: o ex-mascate Raful de Raful, 84.
Não se trata, definitivamente, de um morador comum. Filho de uma dona de casa italiana com um comerciante libanês, Raful juntou durante as últimas seis décadas todos os 4.000 objetos da residência.
Fez mais: construiu, ao longo do quintal, réplicas em tamanho natural de edificações (ou, às vezes, só de fachadas) que existiam na capital e no interior de São Paulo.
Desde que achou o casarão, o museu tenta incorporá-lo. Quer restaurar cada particularidade do lugar e abri-lo à visitação pública.
Uma equipe do próprio museu já realizou um primeiro levantamento das 4.000 peças. Sem vigor físico (nem financeiro) para manter a propriedade, Raful concorda em vendê-la.
Mas o negócio não sai pelo motivo de sempre: dinheiro. Museólogos, antiquários, arquitetos e corretores imobiliários avaliam que o acervo completo -incluindo o imóvel e os gastos com a restauração- vale R$ 3,4 milhões.
Como não dispõe da verba para bancar a empreitada sozinho, o museu recorre às leis de incentivos fiscais e procura parceiros junto à iniciativa privada. Ainda não encontrou nenhum.
Embora saiba do local há cinco anos, a instituição nunca alardeou a descoberta. Tampouco Raful gosta de exibir a casa para estranhos. Somente depois de muita insistência é que a Folha conseguiu conhecê-la.
O ex-mascate aceitou abrir as portas no último sábado, sob a condição de a reportagem não divulgar o endereço do sobrado -nem mesmo o bairro. "Preciso de sossego."
O colecionador é tão inusitado quanto o nome que carrega. Quando lhe perguntam a idade, insiste em dizer que está com 84 anos "apenas oficialmente". Jura que, "no duro", vai completar 101.
"O mesmo cartório que errou meu nome e o registrou dobrado também trocou a data em que nasci", explica entre irônico e solene.
Natural de Batatais (SP), é viúvo e tem dois filhos. Trabalhou sempre como caixeiro viajante, mas fazia as vezes de mágico e hipnotizador nas horas vagas.
Percorria o país de trem, ônibus e carro, vendendo baralhos e "outros artigos para clubes".
Já na juventude, pegou gosto "por objetos em desuso". "Fui comprando tudo o que as pessoas não queriam mais. Ninguém me deu nada -porque o ser humano, quando muito, dá bom-dia."
Esclarece que amealhou o acervo "por prazer, sem nenhum espírito comercial". "Enamoro-me pelas peças, como se fossem mulheres. É mania, loucura, paixão. Chame do jeito que preferir."
Há quatro décadas comprou o sobrado onde mora até hoje e abraçou "outra esquisitice": reproduzir edifícios antigos no quintal. "Não me contentei em catar objetos. Tive de levar um pedaço das cidades para dentro de casa."
Sábado passado, enquanto conversava com a Folha, "tomava a fresca" diante de uma fachada que ergueu inspirado no solar da Marquesa de Santos -construção do século 18 que se tornou museu no centro velho de São Paulo.
"Não ligo se me consideram boboca. O que me importa é levar a vidoca", repetia, desculpando-se pela "rima ingênua de velho".

LEIA MAIS sobre Raful à pág. 4-5

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