São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Nada além de destroços e resíduos

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Um segredo de ficcionista é saber apossar-se de aspirações e incertezas, temores ou alegrias comuns à maioria dos mortais e, por meio da linguagem, transformá-los em espelho mais ou menos fiel, mais ou menos completo de cada um de nós.
Como somente a poucos afortunados é dado levar uma vida radicalmente ímpar, a matéria-prima disponível para o escritor é limitada, cabendo a este último, se seu personagem for o homem comum, aplicar-lhe um tratamento especial a fim de produzir, efetivamente, literatura.
Toda essa introdução, para dar base à seguinte afirmação: conquanto limitado a cenários banais -festas juninas, velórios ou banheiros- e a temas primários -amizade, medo, amor, morte ou ciúme-, David Oscar Vaz consegue em seu livro de estréia, "Resíduos", compor um conjunto de contos com traços próprios e dignos de um autor maduro.
Como afirma no prefácio o professor João Alexandre Barbosa, o sentido maior do trabalho de Vaz reside na "recuperação da memória", na "criação literária como instrumento de preservação de uma presença no mundo".
Dois contos -os melhores do livro- ilustram esse enfoque.
Em "Além do Muro", o autor conta a história de um garoto da zona norte de São Paulo que, no dia de uma festa junina, enxerga um balão no céu e corre em direção ao local onde este provavelmente cairia. Os ventos, no entanto, conduzem o tal balão para dentro dos muros de um hospital psiquiátrico, viveiro de "loucos desfigurados". Afoito, ansioso por captar o objeto a fim de, talvez, dá-lo de presente a uma menina por quem se sente atraído, o menino pula o muro e cai dentro do terreno do hospital, passando a viver momentos de verdadeiro pavor.
Uma das chaves dos contos de Vaz está nisso: na capacidade de fazer uma ponte quase invisível entre a mais comezinha das situações e a mais temível delas. É o que ocorre em "Ludo", para dar o segundo exemplo, conto no qual, depois de perder a avó, uma menina sofre as pressões paternas que visam a liquidar um gato de estimação que, antes afeiçoado à parente morta, agora se apega à neta.
Cabe destacar também o jogo que o autor faz no encadeamento da narrativa. De modo quase imperceptível, encaixam-se relatos dentro de relatos, misturam-se passado e presente, narração em primeira e terceira pessoas, de modo a gerar no leitor, sem solução de continuidade, a sensação de conhecer de um só golpe a vida toda dos personagens. Eis uma habilidade rara.
No primeiro conto, "O Piano e a Flauta", o narrador afirma: "Nada disso pode ter sido verdade, ó sei, se é que alguma coisa eu sei, o que eu vi. Eu vi Amadeu olhar para a Dona Rosa, ela no seu sofrimento e ele na sua bobice se entreolharam: se compreenderam. E meu coração bateu forte, percebi que não era tristeza, mas um pacto de ódio entre a mulher e o menino".
Após a leitura dos nove contos deste livro, em que pese a melancolia que os acompanha do início ao fim, saímos reconfortados, obrigados a concordar com o autor quando ele diz no conto "Fábio", a partir de sua experiência de reconstituição do passado de uma amizade destroçada, que "de tudo, afinal, algo sempre se carrega".
O título do livro, aliás, não deixa margem a dúvidas. Somos feitos de resíduos, resíduos e destroços, nada mais.

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