São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ler, então viver

PIERRE ASSOULINE
DA "LIRE"

Desde sempre os livros são seus amigos. E a literatura, sua boa fada, lhe deu "uma consciência moral". O cineasta místico da Nouvelle Vague recebeu a "Lire" às margens do lago Léman, na Suíça, onde mora, para falar de Gide, Cioran e Valéry.
*
Pergunta - O que o sr. tem a dizer sobre os 50 anos do Festival de Cannes?
Jean-Luc Godard - Nada. Não devo nada ao Festival. Nunca devi nada a ele. Apesar disso, frequentemente tomo parte. Quando se está com um filme novo, participar do Festival pode ajudar a divulgá-lo. Mas hoje em dia os festivais de cinema são como congressos de dentistas. Discursos, coquetéis, jantares, banquetes, o prefeito, a mulher do prefeito... É tão folclórico que se torna deprimente.
Pergunta - De qualquer maneira, para o sr., tudo começou muito mais com livros do que com filmes, não é verdade?
Godard - Sim, é claro. Só pessoas como Claude Lelouch poderiam recordar-se de haver assistido a "Cidadão Kane" aos cinco anos de idade. No meu caso, era muito mais o caso de "Os Frutos da Terra" ("Les Nourritures Terrestres"), que me deram de presente quando completei 14 anos. Foi assim que descobri a literatura. Minha família era muito rígida. "E o Vento Levou" e Maupassant eram proibidos.
Pergunta - A literatura vinha mais do lado Godard da família ou do lado Monod?
Godard - Do lado Monod. Minha mãe lia muito. Mas o gosto pelo romantismo alemão me foi passado por meu pai, que era médico. Entre os 18 e os 20 anos, graças a ele, devorei Musil, Broch, Thomas Mann. Meu avô também me marcou muito. Ele era banqueiro em Paribas. Era amigo de Paul Valéry e tinha todos os livros dele. Chamávamos sua biblioteca de "o valerianum". Nos aniversários de seu casamento eu tinha que recitar "O Cemitério Marinho". Eu também gostava de seu "Tel Quel". Era menos selvagem que Cioran, mas a época era diferente. Ele também repetia belas frases de Valéry.
Pergunta - Outros escritores foram importantes?
Godard - O Gide de "Os Moedeiros Falsos", o Green de "Meia-Noite" e "Leviatã", quase tudo de Bernanos e, também, de Chardonne e Jouhandeau. Tudo isso me marcou. Eu ia quase me esquecendo de Malraux, seu "Esboço de uma Psicologia do Cinema", sua "Psicologia da Arte", "Les Noyers de l'Altenburg", sem falar em "A Condição Humana", um tipo de romance criticado, mas que, para mim, não tem igual. Seus artigos críticos sobre Baudelaire também são inesquecíveis. Malraux, realmente...
Pergunta - Ele teve o bom gosto de só filmar um documentário.
Godard - Poucos escritores fazem cinema. Porque é cansativo. Em geral, um bom escritor não tem nenhum motivo para fazer cinema. Há exceções -Marguerite Duras, por exemplo, que conheci durante dois ou três anos. Mas ela exerceu um pouco sistematicamente demais o filão da originalidade. Ela experimentou todos os registros. Isso, sem falar em sua avareza, sua necessidade imperiosa de reconhecimento. Mas ela fez um filme muito bom, um filme verdadeiro, com pouco dinheiro, que foi "India Song". É o meu preferido. Um filme bom na vida já é o suficiente, não é? Sobretudo em se tratando de uma literata pura, no melhor sentido da palavra. Para ela, não existia nada além do escrever. Isso preenchia uma função fundamental para ela. Escrever, não fazer cinema.
Pergunta - O sr. se surpreendeu com o fracasso de Bernard-Henri Lévy?
Godard - Era previsível. Ele não é mais cineasta do que é escritor. Deveria ser editorialista.
Pergunta - Mais do que regra, o famoso trio Cocteau-Guitry-Pagnol foi uma exceção. Não se vê outros escritores desse calibre que tenham sido igualmente grandes atrás das câmeras.
Godard - Cocteau fazia figuras livres nos exercícios impostos. Eu o admirava ainda mais enquanto cineasta do que enquanto escritor. Com Pagnol, era a mesma coisa. Foi o cineasta nele que descobriu o segredo da máscara de ferro, imaginando que o rei era sempre reconhecido na rua por causa das moedas que reproduzem seu rosto.
Pergunta - Que lembranças o sr. guarda de sua adolescência?
Godard - Eu li muito, muito. Depois, vivi. Mas, na minha vida de adulto, nunca me deparei com as maravilhas que Gide me proporcionou. Aos 20 anos, vivi o choque do contato com Dashiell Hammett e Thomas Hardy. Foram os surrealistas que me fizeram descobrir "Judas, o Obscuro". Mas, desde então, só tenho me maravilhado enquanto espectador. Hoje, a única coisa que pode me comover outra vez é a releitura dos clássicos.
Pergunta - E os romances recentes, o sr. os lê?
Godard - Nenhum deles. É nulidade demais. Prefiro a história, as memórias, a ciência, a filosofia e, sobretudo, as biografias literárias. Me interesso pelo que se acredita ser o lado pequeno das pessoas, a atitude de Joyce ou Conrad para com suas famílias. Antes de ler a vida de George Eliot, eu achava que era um homem... Também gosto do jornalismo investigativo, quando praticado por escritores: o Truman Capote de "A Sangue Frio", Norman Mailer. Na França, só há Gilles Perrault. Meu preferido é "Un Homme à Part", sobre a vida de militante de Henri Curiel.
Pergunta - Tentou ler romances franceses contemporâneos?
Godard - Tentei. Na estação de Lausanne, muitas vezes já comprei livros de bolso enquanto espero. É verdade que fiz algumas descobertas: Léon Daudet, Alexandre Vialatte, Fernando Pessoa, pessoas que li à tarde. Na verdade, não costumo ir a bibliotecas.

Continua abaixo

Texto Anterior: CRONOLOGIA
Próximo Texto: Continuação da entrevista acima
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.