São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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O precioso relógio da história

EDUARDO LOURENÇO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dizer que não estivemos no Oriente seria um exagero. Refiro-me aos ocidentais, aos que lá estiveram e até aos outros, os que só sonharam com ele. Cada um a sua maneira. No que nos diz respeito, estivemos lá, menos que o tempo inteiro que a corpo inteiro, como é nosso costume. O corpo sempre nos serviu da alma, como bons aristotélicos que fomos durante séculos. Exatamente como os chineses que nem precisavam de conhecer Aristóteles. Em suma, aristotélicos ao lado de aristotélicos.
Por isso nada trocamos com os chineses durante quatro séculos e, eles, nada trocaram conosco, como com ninguém. Salvo, naturalmente, as maravilhas que lhes saíam das mãos pacientes para modelar o visível por conta do visível. Por isso, Marco Polo os procurou, depois nós, mais tarde, todos os outros. A muralha da China, que não é a das pedras, mas a da sua visão do mundo e da sua língua, ficou como sempre esteve, brilhando no coração de si mesma, glorificando-se de seu esplendor e de seu isolamento, opaca a ouvidos estranhos.
Quando não se esteve lá, não se tem idéia desta opacidade ativa, deste sorriso sem figura suposta como a do gato de Alice.
Parecerá ofensivo e absurdo instalar a China numa diferença, na diferença, como se nós, ocidentais, estivéssemos, por decreto divino, instalados na transparência. Não é o caso: a opacidade chinesa é só mais "visível", mais intensa, talvez pela sua cultura ser mais antiga e o seu corpo imenso, do que a de outros povos que, para si mesmos, se imaginam modelos de universalidade.
Em todos os sentidos, no geográfico, no histórico, no espiritual, no mental, nós, portugueses, estivemos sempre na periferia desse continente sem exterior chamado China. E, como todos os outros, sairemos de lá, como se diz, para fins de contabilidade nossa, sem na verdade nunca lá termos entrado, tendo lá estado como ninguém. Mas, lado a lado, em camas separadas, como dois extraterrestres, apesar das nossas paradoxais afinidades.
Tão naturalmente pagãos como eles, supersticiosos, pragmáticos, estivemos na China (estamos ainda) como eles lá estão, há milhares de anos, filhos do céu e da terra, indiferentes àquela inquietude sem matéria que os outros ocidentais associam ao tempo. Quando de lá sairmos, sem nunca ter franqueado, senão em tempos legendários, a linha que separa o excesso de deuses sem transcendência nenhuma do nosso cristianismo onírico, nem a saudade, como ritualmente a glosamos, prolongará a nossa voz.
Ficará flutuando apenas, durante um curto instante na eternidade chinesa, o perfume do um outro tempo levando há séculos da beira-Tejo e, como ruína vinda desse tempo não imperial, a fachada luminosa de uma igreja jesuíta, recortada contra um céu indiferente.
Ao menos, sairemos sem remorsos, sem guerras de ópio na memória, que o nosso imperialismo exangue não nos consentia. A fórmula é mais conforme que a gasta e sem sentido de "sair de cabeça erguida". Esta podemos deixá-la à agora pouco vitoriana Inglaterra, que os chineses não queriam que saísse da China como lá entrou: de luvas brancas e de pingalim como os nossos coloniais de outrora em sítios mais propícios que a China. Mas, ao fim e ao cabo, sairá mesmo de luvas brancas.
Durante dois anos, na praça de Tiananmen, um imenso relógio destilou gota a gota os segundos que, no tempo chinês, devem apagar uma humilhação de século e meio, pondo um termo final ao estatuto do Oriente, tal como os europeus o conceberam e viveram. Nesse sentido, a cerimônia do 1º de julho marcou o fim do Oriente como sonho imemorial e presa óbvia do Ocidente. Curiosamente, pondo esse ponto final à humilhação da China, não humilhará a Inglaterra como seria talvez natural que humilhasse. São os chineses que precisam de arranhar essa ferida, o que não é a melhor maneira de a esquecer.
Com fingida calma ou profunda indiferença, a Inglaterra assistiu à festa chinesa quase como se a organizasse. Os ponteiros eletrônicos de Tiananmen, mesmo se contemplados pelo mundo inteiro, não se podem substituir -ainda- aos discretos ponteiros democráticos do Big Ben. Não tanto por estarem maculados por um sangue que a boa consciência do Ocidente só se descobre horrorizada nos relógios alheios, mas por serem herdeiros dos milhares de relógios que o mesmo Ocidente levou para o Oriente. Precisamente, a Inglaterra foi durante séculos a senhora deste "controlo do tempo" que encantava os imperadores da China sem saber que residia neste "controlo" o segredo do poder e da glória.
A glória começou a desvanecer-se em 1949, mas a eficácia, o saber e o poder econômico construíram à saída do rio das Pérolas esta Hong Kong que agora foi devolvida a uma China que a pôde recuperar, mas não pode nem tem interesse em a destruir. Esta é a vitória póstuma da Inglaterra. O que os chineses -é compreensível- imaginaram e viveram como "revanche" só pode ser, na ótica inglesa, a última das retiradas estratégicas de um povo que nunca se deu a ponto de se perder nos outros, como a Espanha, Portugal, mesmo a França, mas se "emprestou". Empresarial e imperialmente, entenda-se. No seu gênero, este ato final, com o seu perfume de nostalgia, não é indigno da Inglaterra.
Indigno foi o pretexto e os meios que em 1842 a colocaram em condição de humilhar e explorar um povo e uma civilização milenária que já eram gente e cultura quando os futuros senhores do planeta erravam nas florestas de Northumberland. Mas tudo isso já está posto na conta definitiva de um passado inglês que na longa memória chinesa será apenas uma peripécia.
O Oriente ocidentalizou-se por fora desde que a Inglaterra na Índia e na China e os Estados Unidos no Japão imaginaram integrá-lo na sua estratégia de domínio universal. Por dentro ficou praticamente intacto. Mesmo o Japão, e mais ainda a China. O próximo milênio que já começou o mostrará. A civilização planetária, a da mundialização do mercado e da comunicação, não é um mero fantasma, mas, se nela incluirmos qualquer coisa como "cultura", segundo o modelo óbvio do Ocidente, com o seu paradigma político democrático e o seu paradigma ético-social dos direitos do homem, é uma pura ilusão.
Para inglês ver, a China eterna e a recente "das duas vias" representaram, impassíveis, no palco da nova jóia da sua coroa, também imperial, a comédia midiática que o Ocidente esperava dela, mas não mudará uma vírgula a sua determinação de acabar, de uma vez para sempre, com o papel subalterno que a mitologia ocidental lhe reservou durante séculos. Alheio à tardia inquietude do Ocidente democrático, o relógio de Tiananmen marcou no momento exato a hora do Oriente.

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