São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Enigmas para uma boa vida

ALAIN DE BOTTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois termos gregos subjazem à noção de "filosofia": philo, "amor", e sophia, "sabedoria"; ambos levam a recordar a ambição original dessa disciplina: indicar-nos um modo sadio de viver bem, sadia e adequadamente. Quase todas as filosofias propõem uma visão da boa vida e um diagnóstico dos males humanos, ainda que não haja duas escolas filosóficas que concordem quanto à via para atingir tal objetivo -o que aliás serve de prova da complexidade dessa ambição.
Platão acreditava que todo mal e toda infelicidade derivavam de uma falta de conhecimento. Se ao menos as pessoas soubessem o que é correto, jamais agiriam tola ou perversamente. Daí a importância de dedicar a vida a empresas racionais -e, para Platão, não se poderia aspirar a nada mais alto do que à vida de filósofo. Platão imaginava que a alma humana era composta de partes inferiores e superiores, as primeiras voltadas para prazeres insatisfatórios e instáveis (sexo, comida ou fama), enquanto as últimas inspiravam ao homem o amor à verdade (ou ao Bem, como diria Platão).
Este amor à verdade não se identificava necessariamente com o prazer ou a felicidade, uma vez que era independente de nossos desejos e inclinações, quase afim a uma fórmula matemática. Ademais, só era acessível a pessoas especialmente inteligentes e dotadas: é por isso que, ao imaginar o Estado ideal na "República", Platão insistiu em que fosse regido por filósofos, investidos de poder absoluto. Afinal de contas, quem precisa de um parlamento quando o governante sabe exatamente o que é o Bem?
É fácil perceber que o ideal platônico da boa vida tem um certo pendor totalitário, visto que lhe falta qualquer noção de que pessoas diferentes podem bem nutrir opiniões diversas, mas perfeitamente legítimas; a moral pode bem ser uma questão de opinião, ou talvez o resultante de situações históricas específicas. A visão platônica da boa vida, rigorosamente intelectual como é, sempre encontrou acolhida em pequenos grupos fechados, mas parece incapaz de apelo mais amplo.
Uma concepção mais ampla da boa vida encontra-se em Aristóteles, que se referia a ela com o termo "eudaimonia". O termo é geralmente traduzido como "felicidade", mas na verdade sugere algo mais ativo, algo assim como o florescimento de todas as faculdades de uma pessoa. Atingir a "eudaimonia" envolve não apenas o exercício do intelecto como também todas as qualidades de nosso caráter. De modo surpreendente para um filósofo, Aristóteles reconhecia a importância de ser espirituoso, de ser capaz de manter uma conversa animada, de não ser demasiado cheio de si e de fugir à vulgaridade. Não bastava ficar a pensar num quarto fechado, pois "o homem é um ser social".
Aristóteles percebeu ainda que muitas virtudes de caráter encontravam-se entre extremos opostos do comportamento social: a coragem, por exemplo, está entre a covardia e a afoitice; a generosidade, entre a frugalidade e a dissipação. Daí sua teoria do meio-termo, que acabava por identificar a virtude à moderação. Ao contrário de Platão, Aristóteles percebeu que o conhecimento do bem muitas vezes não é condição suficiente para viver uma vida virtuosa; por isso recomendava que os jovens fossem levados a adquirir bons hábitos, de modo que, quando chegassem a poder captar intelectualmente a idéia do Bem, já fossem capazes de exercer o autocontrole necessário à sua aplicação.
Indivíduos que se adotam uma visão mais complacente dos prazeres da vida soem dizer-se epicuristas, justificando seu amor aos bons vinhos, à luxúria e aos longos banhos quentes com um apelo aos escritos de Epicuro. Não deixam de ter alguma razão em fazê-lo, pois Epicuro era um hedonista -isto é, professava uma doutrina filosófica que vê o prazer como o único bem, o único objetivo da vida. Entretanto Epicuro não era "epicurista" ou "hedonista" no sentido popular destes termos, pois sua versão do que constituía o prazer era notavelmente não-materialista; certa vez, escreveu a um amigo: "sinto frêmitos de prazer quando vivo a pão e água, e cuspo sobre os prazeres luxuriosos". Não recomendava qualquer atividade que, inicialmente prazenteira, mostrava-se subsequentemente dolorosa; atacava, por exemplo, o amor sexual (acompanhado tantas vezes de fadiga e remorsos) e a bebida (causa de dores de cabeça e melancolia).
Essa abordagem ascética foi compartilhada pelos filósofos cínicos e estóicos, que advogavam a completa rejeição à vida em sociedade. O objetivo final era a indiferença às influências externas, aos desejos e às paixões. Conta-se que o cínico Diógenes fez uma visita a Alexandre Magno, que lhe perguntou se podia fazer algo para aliviar-lhe a pobreza. "Sim, você bem poderia sair da minha frente para que eu possa ver o Sol".
A equação de sociedade e infelicidade é um tema recorrente na história da filosofia. De uma perspectiva cristã, Santo Agostinho viria a retomar vários dos argumentos de Epicuro, aconselhando aos cristãos que fugissem às hipocrisias e vaidades do mundo. O mesmo tema reaparece no século 18, de um ponto de vista agora secular. "A maior parte dos nossos males nos vêm de nós mesmos, e bem poderíamos evitá-los se aderíssemos ao modo de vida simples, uniforme e solitário que a natureza nos prescreve", ensinava Rousseau, reagindo ao luxo das elites na França pré-revolucionária e ansiando por uma existência mais simples e mais feliz. Podemos desejar belas roupas e palácios dourados, mas nada disso será garantia de felicidade: "É óbvio que o primeiro homem a fabricar roupas ou construir uma morada para si estava provendo-se de coisas supérfluas".
Muitas das preocupações de Rousseau foram reformuladas por Marx, desta feita em contexto econômico; Marx afirmava que o capitalismo moderno, com suas fábricas e cidades, havia destruído a felicidade de uma era artesanal mais feliz. Uma pessoa trabalhando numa linha de produção não poderia desfrutar os prazeres do trabalho manual ao alcance de um artesão medieval, membro de uma guilda e fornecedor de clientes conhecidos. As necessidades humanas haviam sido deixadas de lado em nome da preocupação com o dinheiro: "A desvalorização do mundo dos homens ocorre em proporção direta ao valor crescente do mundo das coisas". Era chegada a hora da revolução.
Como esta última solução foi inequivocamente desacreditada pela história, os filósofos têm-se mostrado menos ansiosos por advogar novas versões da boa vida. Essa nova precaução remonta a J.S. Mill: por mais que os filósofos antigos se achassem no direito de "nutrir um profundo interesse na disciplina mental e física dos demais indivíduos", a vida moderna não abria espaço para tal formulação de regras. O ideal moderno resumia-se simplesmente em ser deixado em paz, em ter liberdade para buscar a própria felicidade da melhor maneira possível. Como escrevia Mill: "A única liberdade que merece este nome é a de buscar o próprio bem, cada qual à sua maneira, à medida que não privemos outrem de sua idêntica liberdade".
Este decerto é um programa menos ambicioso que o de Platão, e já foi muito atacado por supostamente criar um vácuo moral e ético na sociedade moderna. Nossa reação às posições de Mill dependerá de nossa atitude diante de nossa próxima questão: a moral será objetiva ou subjetiva?

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