São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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A revanche do território

MILTON SANTOS

As "desordens" atuais não são pontuais ou ocasionais. Elas fazem parte de um processo estrutural em andamento, do qual o território brasileiro é um quadro e também um ator.
O território não é apenas um conjunto de formas naturais, mas um conjunto de sistemas naturais e artificiais, junto com as pessoas, as instituições e as empresas que abriga, não importa o seu poder. O território deve ser considerado em suas divisões jurídico-políticas, suas heranças históricas e seu atual conteúdo econômico, financeiro, fiscal e normativo. É desse modo que ele constitui, pelos lugares, aquele quadro da vida social onde tudo é interdependente, levando, também, à fusão entre o local, o global invasor e o nacional sem defesa (no caso do Brasil).
Ao longo da história, as nações conheciam tensões entre o externo e o interno, além de outras, próprias a todo organismo vivo. Essas tensões, resultado do comércio, das relações internacionais, das lutas de classes e das divisões do trabalho, eram registradas pelo território como um todo e pela sociedade como um todo.
O Estado funcionava como regulador. Se, dentro do aparelho estatal, havia especializações, alguns ministérios aparecendo como interlocutores do externo e outros fazendo o mesmo em relação ao interno, o núcleo do governo funcionava como árbitro, em benefício dos equilíbrios territoriais e sociais.
As tensões eram reguladas, assegurando boas relações externas e internas, sempre a partir da idéia de nação. A evolução paralela das noções de soberania e de cidadania conhecia um aperfeiçoamento paralelo. O território era ao mesmo tempo normatizado e normativo, e o equilíbrio das relações externas e internas era consequência.
A globalização constitui um choque brutal diante dessa vocação de harmonia quebrada pelas guerras. Isso é devido à primazia do econômico sobre o político, do instrumental sobre a finalidade e do dinheiro sobre o homem.
Por exemplo, o chamado "Produto Nacional Bruto" tornou-se apenas um nome-fantasia para o que se chamaria o Produto Bruto Global, este sendo entendido como formado pelos agregados macroeconômicos que interessam ao desenvolvimento do mercado chamado global e uma forma de politização das estatísticas que privilegia os interesses dos bancos e das empresas globais sob a batuta do FMI "et caterva".
Quando a globalização aparece como um dado absoluto, portanto abstrato, imposto brutalmente, mas de modo indiscriminado, às sociedades e aos territórios, instala-se uma nova forma de uso do território, impondo-lhe modificações súbitas aos conteúdos quantitativos e qualitativos e alterando todas as relações mantidas dentro de um país, já que o território é sempre unitário.
Essa desordem aumenta na medida em que os respectivos países aceitam sem restrição a tese da globalização. Neste último caso -o do Brasil-, um novo unitarismo, mais férreo e, ao mesmo tempo, mais desagregador é utilizado, não mais em defesa do território e da nação, mas para facilitar a todo custo a entrada da globalização. Trata-se de um vale-tudo, com a morte, se necessário, do sentimento e da prática da solidariedade e da própria idéia de nação. Daí as manifestações e a agravação das tensões no território brasileiro.
A cidadania funciona como um dique 0diante da agressividade das relações externas típicas da globalização. Como o Brasil jamais conheceu uma cidadania completa, esse papel de obstáculo é limitado. Enquanto isso, o território se torna fluido, essa fluidez sendo ampliada por todo tipo de desregulação, no interesse dos atores hegemônicos globais. E o Estado, que já foi regulador das crises entre o externo e o interno, passou a ser um regulador do externo, um protetor do externo.
O Ministério da Fazenda, por exemplo, parece ter se tornado garante dos compromissos globais e das subordinações das relações internas às externas. O próprio Itamaraty, às vezes, dá a impressão de haver embarcado na mesma canoa.
O território, mais unitário e mais fluido, pode comprometer a união, se o progresso material for subordinado aos interesses de atores sem compromisso com a sociedade nacional. Os vasos comunicantes criados com o progresso dos transportes e das comunicações são instrumentais à violência da moeda e da informação, multiplicando os efeitos da competitividade, que se instala com agressividade generalizada.
A competitividade dos nossos tempos, além do seu papel na produção da corrupção, provoca a ingovernabilidade por baixo (municípios e Estados) e a ingovernabilidade por cima (abandono dos interesses essenciais da sociedade).
As tensões agora reveladas pelo território resultam de um conjunto de forças estruturais agindo nos lugares. Daí a desordem geral que se instala, como uma vingança do território contra a perversidade do seu uso.

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