São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Da Caravana Rolidei à TV da Rocinha

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Passou sem muitos comentários, numa estranha semiclandestinidade, a notícia de que a TV por assinatura está chegando à favela da Rocinha, a maior do Rio. A TV Roc já está lá, incrustada no morro.
Por ironia, a iniciativa veio de fora. Coube a um grupo argentino, que comercializa os mesmos canais distribuídos pela NET, das Organizações Globo, além de um comunitário.
A gerente comercial da TV Roc projeta dez mil assinantes num prazo de cinco anos, com preços unitários um terço inferiores aos praticados pelo mercado, ou seja, logo abaixo do morro.
Como tudo agora é sinônimo de modernidade e globalização, eis a Rocinha, "globalizada": metralhadoras Uzi, cocaína de primeira e canais estrangeiros disputam a atenção dos "consumidores". Esses podem optar, numa rápida "zapeada", entre um documentário sobre o reino animal da National Geographic, um programa de auditório alemão ou uma candente sessão da TV do Senado.
Continuam, como sempre estiveram, desintegrados da sociedade, mas agora estão conectados ao mercado mundial da informação.
Confrontada com o passado recente, essa nova forma de convivência entre atraso e modernidade que vem da Rocinha ajuda muito a entender o Brasil.
Todos devem se lembrar de "Bye, Bye, Brasil" (1980), filme de Cacá Diegues. Pois então. Lá, a Caravana Rolidei, nome do grupo de artistas mambembes que percorriam o interior do país, se via às voltas com a desgraça de ter os dias contados porque era incapaz de competir com "as espinhas de peixe" -forma com que eles mesmos chamavam as antenas de TV recém-instaladas até nos confins do território nacional.
As populações locais continuavam analfabetas, ainda tinham fome e morriam de malária, mas passavam a ter a opção de ver a novela "Dancin' Days" com Sônia Braga. Estavam, finalmente, conectadas ao Brasil, na mesma medida em que agora a Rocinha está plugada no planeta.
A integração do território nacional era uma obsessão do regime militar. A Transamazônica fracassou, quase tudo daquela triste época fracassou, mas a integração foi obtida pela Globo.
Nada disso foi ocasional. A transmissão da TV a cores no Brasil foi inaugurada pela Globo no dia 31 de março de 1972, oitavo aniversário do golpe de 64.
Vale a pena citar um trecho em que Walter Clark, então todo poderoso, descreve a ocasião, na sua autobiografia "O Campeão de Audiência": "Quando o desfile começou, surgiram na avenida Jô Soares, Tônia Carrero, Francisco Cuoco e outros. Foi uma ovação danada. Sucesso arrasador. O Médici e dona Sila chamaram o Jô e a Tônia para assistir ao desfile junto com eles. Os outros artistas foram paparicados, só deu Globo".
É preciso reconhecer que, vista à luz desse período de "comunhão nacional" patrocinado pelo regime militar, com o apoio decisivo da Globo e o auxílio de alguns astros da mídia, a notícia de que a Rocinha está sendo cabeada tem um sabor muito menos espetacular, quase anticlimático.
Mas hoje a integração nacional deixou de ser um problema -ou melhor, é isso que aí está. A questão agora é saber como é que se integram esses escombros ao mundo globalizado. Cacá Diegues teve seu dia de Glauber Rocha -foi profético: o filme da estação ainda se chama "Bye, Bye, Brasil".

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