São Paulo, quarta-feira, 6 de agosto de 1997
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Respeito à Natureza nos transforma em animais

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tarântulas, crocodilos, leopardos, tubarões: quem ligar para (011) 1406 pode conhecer os hábitos desses e de outros animais, adquirindo os vídeos da série "Predadores Selvagens". As cenas do anúncio são conhecidas de quem assiste TV. Impressionam pela violência.
Duas chitas investem sobre uma gazela indefesa; uma cobra dá o bote contra a câmera. Vi outra cobra ser envenenada pela enorme aranha da Amazônia, o mar da Polinésia turvar-se de sangue nos ataques do tubarão azul, os gnus da África tentando beber água numa poça coalhada de jacarés famintos.
Vi também tubarões amigáveis, brincando com os escafandristas; a mãe-crocodilo guardando os filhotes na bocarra; o inteligente leopardo matando sem dor a sua presa, e ensinando à prole os segredos e prazeres da caça.
"Predadores Selvagens" é uma tentativa de conferir mais emoção e sangue ao velho gênero dos documentários sobre o chamado mundo natural. Investe em cenas de violência, assim como há outra série à venda ("Acasalamentos Selvagens"? Talvez, não me lembro o nome) que aposta no sexo entre animais.
Geralmente esses seriados sobre a Natureza conseguem a proeza de serem chatos e interessantes ao mesmo tempo. São interessantes, porque cheios de informações imprevistas e comportamentos curiosos. São chatos, porque tudo neles se submete ao ritmo da própria Natureza e à paciência do pesquisador.
São comuns, por exemplo, os intervalos na narrativa. "A cada outono", diz o locutor, "o milhafre siberiano prepara o seu ninho..." (silêncio), "ele procura os ramos secos da bétula cor-de-rosa..." (silêncio), "para isso, vence distâncias de até seis quilômetros..." (silêncio). E assim o espectador adormece.
Os documentários desse tipo tendem a atingir o público de mais idade, chocado diante do liberalismo da novela das sete, sequioso de harmonias naturais. O velho e sempre renovado ciclo da vida oferece, aos velhos, um pretexto para a concordância e a resignação.
Há uma filosofia implícita nesses seriados, a de que a Natureza sempre é sábia e sempre tem razão.
Assistindo a tais programas, a pessoa de mais idade se entrega a uma catarse de gênero mortiço e tênue: sou sábio, porque velho; sou vítima, porque a ordem da Natureza prevê minha extinção; mas admiro a ordem da natureza, uma vez que me aproximo dela em sabedoria; logo, solidarizo-me com meu carrasco, desde que ele me permita dizer, às gerações mais jovens, que estão loucas, que destroem a ordem das coisas... e cada silêncio no documentário vibra como o silêncio dos enterros, em golpes triunfais de pá.
Pois cada morto vence os vivos, torna-se inviolável e absoluto. Nós é que nos agitamos no erro, no remorso, na saudade, na ânsia de dizer qualquer coisa, de fazer qualquer coisa -que não lhes concerne mais. De nada adianta. O que poderíamos ter sido para eles, já fomos; continuamos apenas a viver, postumamente.
Mas a série "Predadores Selvagens" acena com outras possibilidades, não as habitualmente dirigidas ao público mais velho, e sim as que mobilizam o público mais jovem. Violência e sexo. Sangue e ordem.
Simpatizei com "Predadores Selvagens" pelo seguinte. Estava na hora de acabarem com a idéia de que a Natureza é o lugar permanente do Justo, do Certo, do Bom.
Mostrar as violências do tubarão e da tarântula teria um efeito educativo, ou seja, o de mostrar que na Natureza as carnificinas e torturas são fatos rotineiros, e que qualquer piedade, qualquer ecologia sentimental é acima de tudo um fato humano, um ato de artifício, não uma comunhão cósmica com a Mãe-Terra a quem estupramos diabolicamente pela Tecnologia.
Gostaria de ver, nessa série, o espetáculo hediondo que é a Natureza, perto do qual nossos desastres e violências ecológicas são café pequeno. Não consegui. Mesmo em "'Predadores Selvagens", a ideologia harmônica, sistêmica, de uma Natureza sábia prevalece.
Sem dúvida, esse seriado é consumido por adolescentes que gostam de identificar a própria agressividade à agressividade animal. Valem-se, como os velhos, mas em registro oposto, da idéia de que a natureza é sábia.
Gostaria de dizer apenas o seguinte: a natureza não é sábia coisíssima nenhuma. Tudo o que temos de tolerância, de cultura, de fidelidade, de amor e sabedoria foi feito contra a natureza que nem está ligando a mínima para nós.
Nosso respeito à natureza é apenas uma forma, entre outras, de nos tornarmos animais. O problema é outro, o de nos tornarmos homens.

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