São Paulo, sexta-feira, 8 de agosto de 1997
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A ilha-deusa do mar Egeu

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

A água brota ali mesmo, rompe ainda quente das cavernas submersas de Possêidon, cujo templo de mármore projeta a sombra de suas colunas sobre o azul do Mediterrâneo. Depois de oferecer ao deus dos Mares os últimos sacrifícios propiciatórios, o viajante está pronto.
Pode iniciar a travessia pelas águas que se separaram, um dia, para que subissem as terras encharcadas que formariam as Cíclades.
Rainha do Arquipélago, deusa do Egeu, Mykonos é a ilha Estanque e Bastante. Homero fez Ulisses navegar pelas mesmas águas, mas em outra direção. Deixou Mykonos intacta.
O casario é branco, as ruas são brancas, os moinhos são brancos. Olhada de longe -e sem pressa-, a pequenina aldeia de pescadores parece a espuma de uma onda que se fixou, em pedra, ao longo das enseadas, côncavas e abertas ao sol. Povo de muitos deuses e muita devoção, os gregos gostam de capelas domésticas. Cada grupo de três ou quatro famílias constrói a sua pequenina igreja, onde as lâmpadas votivas ardem diante de ícones dourados e desbotados pelo tempo.
A geografia ensina que ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados, mas não diz o importante: que terra e que águas merecem formar realmente uma ilha? Afinal, até a Inglaterra é uma ilha.
Homero andou naquelas águas, cantou suas ondas azuis, suas espumas quentes e iluminadas, o esplendor de suas auroras. Quem estuda grego estranha que a maioria dos cantos homéricos comece por uma descrição da aurora. Sempre chega o dia em que se dá razão aos outros: ele tinha motivos para isso. Homero situou a ilha de Ulisses do outro lado, ao norte do Pireu, mas todas as ilhas gregas se parecem.
Mykonos -como sabeis- é uma das Cíclades, fica perto de Lesbos -cujo nome também sabeis- é pertíssimo de Patmos, onde o apóstolo João viu os Quatro Cavaleiros do Apocalipse e a Grande Besta do próprio. Mykonos não tem esse passado glorioso. Nem mulheres que se entregaram ao lesbianismo nem santos que se entregaram a visões apocalípticas. Mas há em suas ruas, no labirinto de seus caminhos brancos, um enigma que o sol decifra a cada manhã.
Não é paraíso distante e impossível. Para quem é pobre e não tem iate, há barcos e navios diários que ali lançam suas âncoras cansadas. Saindo do Pireu e fazendo escalas em outras ilhas (Syros e Tinos), a viagem pode durar sete horas, tempo suficiente para ver o sol dos gregos tombar como um deus em chamas no mar dos gregos. Para os mais afobados, há o avião.
Não se precisa saber de muita coisa além do gasto. História e mitologia são dispensáveis, mas, para quem gosta, é bom recordar que o nome da ilha se deve ao herói Mykon, mítico e fantástico como todos os heróis que fenderam a terra com a ira de seus raios e violentaram as mulheres com a fúria de seus músculos insaciáveis.
Fenícios, cretenses, iônios, persas, macedônios e romanos andaram por lá -mas essa cambada também andou por outras paragens e não produziu outra Mykonos. Pois o que a distingue de outras é a solidão de seu destino de ilha.
Mar, sol, peixe, vento, o ritmo alegre da "shistaki" (aquela dança em que os homens se dão os braços, como dois crucificados abertos e entrelaçados), o gosto áspero de "ouzo" -a pinga local, forte e necessária, que combina com peixe, com sol, com vento, com pranto e com prazer.
Há mais de cem anos tudo ficou perfeito ali. Perfeito e completo, como se todos tivessem decidido sair da História para entrar na vida. Há muito que os gregos, em geral, acharam que já tinham dado o que podiam dar -filosofia, teatro, ciência, política, melodia, técnica, deuses, democracia, dúvida socrática, amor platônico, lógica aristotélica, herói da Maratona, tragédia de Sófocles, complexo de Édipo, Século de Péricles, mármores de Fídias, banho de Arquimedes, pira olímpica e, de quebra, olhos esbugalhados de Melina Mercouri.
Mykonos resistiu a tudo. Armou o seu estilo de vida, simples, silencioso, em contato com as essências salgadas de sua paisagem azul e branca.
Os homens atingem idade avançada e continuam grudados aos barcos, molhados de ondas, olhando as mulheres com a força de suas pupilas vivas e negras, que o tempo não foi bastante para apagá-las. Eles não penduram as chuteiras antes dos 80 -em nenhum setor da humana lida.
As mulheres passam em silêncio, iluminadas pelo sol que amadurece as frutas e frutifica as oliveiras. Há velhas também, mas as moças lá estão, os pulsos brancos, as pernas fortes, decifrando com seus olhos imensos o labirinto das ruas que levam à sombra do homem.
Eles estão chegando, turistas afobados, lamentando que a ilha não tenha um Hilton ou um Sheraton. Não está em moda citar Sartre mas lá vai: o inferno são os outros mesmo.
Não sou grego nem turista, nem rico, nem ilhéu. Em Mykonos, depois de comprido giro por Jerusalém, Atenas e Roma, descansei meus olhos fatigados de ruínas -e deslumbrados.

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