São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
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Betinho provou que miséria não é natural

Sociólogo tratou de problemas jamais solucionados

ELIO GASPARI
COLUNISTA DA FOLHA

O que fez do Betinho o Betinho? Sua capacidade de reduzir a vida pública a um serviço em benefício dos excluídos. Nada mais. Isso pode soar banal, ou mesmo louvor de necrológio. Desde que foi descoberta a banalidade do mal, deixou-se de prestar atenção à banalidade do bem.
Suas causas pareciam banais.
Queria arrumar comida para quem tinha fome, casa para quem não tinha morada e trabalho para o desempregado. São coisas que, pela ordem moral das coisas, todo mundo deveria ter. Se não tem, isso faz parte da ordem natural das coisas, e, portanto, não há jeito.
O que fez de Betinho o Betinho foi ter mostrado que esse fatalismo da desordem social nada tem de natural. Conseguiu isso arrastando o apoio das mesmas pessoas que são capazes de formular teorias em torno da inevitabilidade da miséria e da natureza purificadora do desemprego numa época de transição para o que se supõe serem novas formas de trabalho.
Não havia hipótese de ele pronunciar a palavra "globalização". Juntou a favela ao condomínio porque estava convencido de que isso não só era possível, como era fácil.
Não tinha partido político, emprego público ou aposentadoria especial.
Aidético, nem de futuro dispunha.
Não tinha coisa nenhuma, e isso fazia com que tivesse só a banalidade de sua disposição. Organizou coisas que nenhum governo foi capaz de organizar sendo um desorganizado.
Movimentou centenas de milhões de reais sem conhecer donos de cofre. Fez isso muito mais pela vontade do que pela idéia. Será que alguém acha mesmo que o problema dos meninos de rua é insolúvel? Será que uma pessoa, depois de refletir por cinco minutos, é capaz de sustentar que nas grandes cidades brasileiras vivem milhões de pessoas que devem se conformar com a natureza estrutural do desemprego crônico?
Carregava velhas bandeiras porque problemas como a fome e a falta de moradia só parecem antigos porque não foram resolvidos. Hoje a plutocracia brasileira está de tal forma protegida do povo que 11 em cada 10 milionários só conseguem andar dois quarteirões de mãos dadas com os filhos em Nova York. Sua campanha contra a fome mostrou aos brasileiros, e sobretudo ao andar de cima, que a segregação social é produto do comportamento, não da alma nacional.
Betinho entrou numa brecha da alma de todos os brasileiros porque lhes mostrou o tamanho de sua vontade. Mobilizou-os somando os pedacinhos que existiam na cabeça de cada um. Há um pequeno Betinho em cada pessoa que vê uma criança na rua ou tem medo de ser assaltado num cruzamento. É um Betinho miúdo, irrelevante.
Essa vontade estava associada a uma criatividade excepcional. O mesmo Betinho que vivia falando em acabar com a fome (coisa velha) transformou o Ibase no primeiro provedor de serviços da Internet no Brasil (coisa nova).
Era um mestre quando lidava com a imprensa. Verdadeiro artista driblando políticos. Sabia cortar como navalha. Talvez tenha sido o único brasileiro a conquistar a confiança do andar de baixo sem tentar manipulá-lo e, acima de tudo, sem se deixar manipular. Estabeleceu uma relação com o povo que só tem paralelo no episódio da Carta Testamento de Getúlio Vargas. O que Getúlio conseguiu se matando, ele fez vivendo.
Betinho foi-se embora deixando para trás uma doce lembrança de sua vida.
A sensação de que ele passou por aqui ensinando a banalidade do bem.

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