São Paulo, sábado, 16 de agosto de 1997
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Lins é um autor e tanto

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que faz um livro ser bom? Parte do leitorado credita a qualidade ao apelo emocional -é a parte que quer rir, chorar, assustar-se ou se excitar. Parte credita ao espelho: aquilo que fala de mim coisas que eu não consigo verbalizar é que é bom.
Enquanto uma fatia do mercado quer conforto, uma outra quer provocação. Alguns querem ajuda, outros, sonhos. Mas do que um leitor nunca abre mão é de uma boa história.
"Cidade de Deus" é uma história e tanto. Desculpe, histórias. Histórias de tipos que moram em uma favela e sonham, intrigam, invejam, disputam, amam e odeiam, às claras ou às escondidas, como bem é o leitor.
O que faz um autor ser bom? Sua capacidade de contar a história, sua inventividade poética, seus personagens, os conflitos.
Paulo Lins é um autor e tanto. Esmiuça as sombras de seus personagens, como o marginal que sofre por ter um irmão homossexual, ou o cobrador, cuja namorada loura foi estuprada.
Na crueza de sua linguagem, explora a crueza das contradições humanas, onde rico vai "para" um lugar e pobre "pra" outro.
São inúmeros seus personagens: Zé Pequeno, Barbantinho, Zé das Alfaces, Marreco, Alicate, Busca-Pé. Cada qual ganha vida, ganha voz, numa rede de nós que compõem o retrato de uma só gente, a comunidade da Cidade de Deus.
Lins é um ótimo escritor. Constrói imagens com um jogo de inusitadas palavras, como "mangas engordando" e "cobra alisando o mato".
Uma infinidade de tipos aparecem e interagem. Muitas crianças disputam o chão com as cobras, sapos e preás. A maioria dos moradores é trabalhadora. Mas, em poucas palavras, o autor define a lei que começa a imperar no antes bucólico paraíso, uma cidade de Deus: "Falha a fala. Fala a bala".
"Olhou para o céu, depois para o chão, concluiu que Deus ficava muito longe... Se o inferno é embaixo da terra, ele está muito mais próximo", escreveu.
E o que é apenas um condomínio isolado ultrapassa as fronteiras. Lins fala do Brasil, um Brasil de poesia, sangue e mangues. Um Brasil que violentou sua natureza, construiu sua desgraça e tingiu o chão de um vermelho da violência desmedida.

Livro: Cidade de Deus
Autor: Paulo Lins
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (550 págs.)

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