São Paulo, sexta-feira, 22 de agosto de 1997
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Estado usa cultura para se legitimar

TAÍS GASPARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Existem leis de incentivo cultural para todos os gostos. Dedutível do Imposto de Renda, do IPTU, do ISS, do ICMS.
Para beneficiar teatro, cinema, circo, dança, música, vídeo, museus, livros, folclore, artesanato e até cultura negra e indígena especificamente. Para pessoa física ou jurídica. Pessoa jurídica tributada com base no lucro real ou presumido. Não importa.
Todos que pagam algum desses impostos podem se beneficiar. E já que de algum modo o dinheiro vai estar mesmo perdido -ao menos do ponto de vista do contribuinte-, pois se trata de importância que deverá ser paga, pelo menos que seja destinada a uma atividade conhecida, ao invés de misturar-se ao bolo das arrecadações cujo fim nunca é muito esclarecido.
Tudo começou com a lei Sarney, que teve o grande mérito de eclodir o debate do marketing cultural. Foi a primeira do gênero no Brasil e pareceu vir para salvar o marasmo cultural. E, de fato, muito fez, apesar das críticas, principalmente após sua extinção, nos primeiros dias do governo Collor.
Depois veio a Lei Mendonça (nº 10.923/90), iniciativa do município de São Paulo. Revendo os conceitos que então haviam sido decisivos para a extinção da lei Sarney, no final de 91 Collor promulga a Lei Rouanet (nº 8.313).
Em julho de 93, Itamar Franco edita a Lei do Audiovisual e, em 94, o governador Fleury (SP) cria a Lei de Incentivo à Cultura, ou LINC (nº 8.819), de âmbito estadual.
Uma das dificuldades de utilização mais frequente dessas leis é a gama de regulamentações que sofrem. Chega-se a desconfiar se, de fato, há interesse por parte do Estado em que o contribuinte consiga atingir seu objetivo, tal a confusão. A cultura vive, nesse sentido, um paradoxo: por um lado, uma crescente proliferação de leis que incentivam a produção cultural e, por outro, uma série de dispositivos legais limitadores do alcance das mesmas leis. Velha estratégia, dirão os sociólogos, de se conceder em direito o que é negado pela regulamentação.
Segundo a maioria das leis atualmente em vigor, a escolha do projeto cultural cabe ao contribuinte. Basta que ele tenha sido previamente aprovado. A única que não permite essa escolha é a LINC. A escolha do projeto cabe, nesse caso, à Secretaria de Estado da Cultura, e não vincula o contribuinte.
O que não falta, no emaranhado de decretos, portarias e instruções normativas que regulamentam os incentivos à área cultural, são mecanismos de efeito retórico: extensão dos setores contemplados pelo incentivo ou aumento da alíquota dedutível do imposto.
Essa, aliás, tem sido noticiada como a mais nova iniciativa com relação à Lei Rouanet. Ao que tudo indica, permitirá que 100% do valor do projeto seja descontado do IR, obedecido o limite de 5% do valor do imposto devido.
A contrapartida do contribuinte constituía, até agora, na grande diferença entre a Lei Rouanet e a do Audiovisual; pois aquela limitava o valor da dedução do imposto em até 30% (no caso de patrocínio) do valor cedido para o projeto cultural. Com a alteração prometida, o contribuinte desconta tudo o que investe do seu imposto.
O contribuinte pode beneficiar-se de todos os tipos de dedução, alguns até cumulativamente. Pode destinar até 5% do seu Imposto de Renda a uma atividade cultural em razão da Lei Rouanet e deduzir até 20% do IPTU para outro projeto cultural em função da Lei Mendonça.
Há uma limitação, contudo, no que se refere à cumulação entre os valores dedutíveis do IR.
Ainda que a Lei Rouanet e a do Audiovisual permitam, ambas, a dedução do imposto devido, aquela no limite de até 5% e esta no de até 3% para pessoa jurídica, a Receita Federal limitou o valor total do desconto do imposto em 5%.
Isso quer dizer que a pessoa jurídica, se quiser investir em atividades contempladas pela Lei Rouanet e pela Lei do Audiovisual, terá que optar entre uma ou outra ou dividir os recursos, de modo que o total não exceda o limite fixado pela Receita.
É evidente que essas leis não deixam de ser um eficaz mecanismo de implementação de atividade considerada desejável, mas o próprio instituto utilizado pela maior parte delas denota um fim legitimador.
A concepção do incentivo fiscal como uma técnica de vitalização econômica dirigida remonta aos anos 60. O que não se percebia então, mas que logo depois foi denunciado por economistas e sociólogos, é que o mecanismo do incentivo faz com que os indivíduos sintam como seus os projetos que na verdade são patrocinados com o dinheiro público (aquilo que se deixou de arrecadar).
No caso das leis de incentivos fiscais à cultura, a própria criação de estímulo à produção cultural é associada a uma idéia que gera consenso. Demonstra adesão a uma causa sem dúvida simpática -alguém questiona a necessidade de incremento da atividade cultural?
É interessante observar que as leis de incentivo à cultura vão adotando os nomes de seus criadores (Sarney, Rouanet, Mendonça), no afã irresistível que se tem de associar o homem público a uma causa politicamente correta.
Se é verdade que no passado a intervenção estatal na área cultural no Brasil encontrava-se relacionada à expansão institucional -como com a criação de cursos de ensino superior- e que, posteriormente, nas décadas de 60 e 70, o processo tomou outros rumos, que previam, bem ou mal, a construção de um projeto de hegemonia nacional, atualmente o Estado parece fadado a utilizar a questão cultural para legitimar-se.
Nada contra, já que parece ser essa a tecnologia de ponta de que se dispõe, e que tem produzido resultados positivos. Mas que, pelo menos, ao colocá-la em prática, não acabem os nossos governantes por desvirtuar o próprio objetivo que, de início, pareciam perseguir: o incremento à atividade cultural.

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