São Paulo, sábado, 23 de agosto de 1997
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Constituição desconstituída

WALTER CENEVIVA

Muitas emendas sucessivas na Constituição de um país representam perigoso elemento perturbador da ordem jurídica, como se viu na história brasileira, desde o Império, disse o senador e respeitado jurista Josaphat Marinho, em recente entrevista de televisão. Acrescentou o senador baiano que, chamada de lei das leis, a Constituição deve, por ser elemento básico de todo o ordenamento legal vigente no país, ter alguma estabilidade. As considerações feitas por Josaphat me inspiraram estas anotações.
Desconstituir a constituição corresponde a perturbar sua estrutura orgânica, em face de necessidades ocasionais, ao sabor dos detentores do poder, em circunstâncias que raramente atendem ao interesse coletivo.
Aprovada em 25 de março de 1824 (por isso há tantas ruas cujo nome festeja a data), a Constituição imperial começou a ser alterada com a lei de 12 de outubro de 1832, pela qual os deputados receberam a especial faculdade de reformarem artigos da Carta. Assim nasceu o ato adicional de 12 de agosto de 1834, cujos 32 artigos reestruturaram o Estado imperial. Mas não parou aí. Sob desculpa de interpretar dispositivos do ato adicional, saíram mais oito artigos tratando de empregos municipais ou provinciais, mas principalmente das garantias da magistratura, um velho tema entre nós. Última emenda recriou o Conselho de Estado, que o ato adicional excluíra da ordem jurídica. Apesar dos pesares, foi a menos atingida pela fúria emendista, nos quase 70 anos em que esteve em vigor.
A primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, sofreu substancial emenda em 1926, mas antes disso, nove meses depois de publicada, o marechal Deodoro da Fonseca, dissolvia o Congresso e ordenava a escolha de novos representantes para reverem a Constituição. O golpe não deu certo. Floriano Peixoto, o vice, à frente do governo, reconvocou o Congresso, anulou o decreto de Deodoro e, a contar daí, passou a editar leis que mudaram a Constituição, mesmo sem inserirem novos artigos. Assim foi, no campo das responsabilidades do presidente da República, na criação de incompatibilidades administrativas e eleitorais.
Instaurado o governo provisório de 1930, chefiado por Getúlio Vargas, criou-se situação semelhante à que esteve em vigor depois de 1964: a Constituição continuou aparentemente em vigor, mas o governo federal passou a exercer, discricionariamente, em toda plenitude, as funções do Poder Executivo e do Legislativo. O ritmo modificador da Carta de 1946 chegou a 21 emendas ao todo, até 1966, já na ditadura, mas, a partir de abril de 1964 passou a vigorar o ato institucional nº 1, que atribuiu ao governo militar todo o exercício do poder constitucional. Dezessete atos institucionais e 40 atos complementares, surgiram a contar de 1965. A Constituição -mero instrumento formal- não expressava o direito vigente, mas continuava, teoricamente, em vigor. A Constituição de 1969 foi, ela mesma, uma emenda (nº 1). Embora editada pela junta militar, sofreu 27 emendas, inclusive a de nº 26, que reabriu o processo democrático, ao convocar a assembléia nacional constituinte.
Por fim, a Carta de 1988 está na base de quase duas por ano. Tem-se, pois, a certeza de que os muitos exemplos da história ainda não ensinaram nossos políticos e governantes sobre a gravidade dos inconvenientes de continuarmos a desconstituir as constituições.

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