São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Ciro Gomes, candidato do PS(D)B; Religião e Estado; Bomba de retardo; Meninos de banco; Férias; Uma paixão pela tribuna do júri; O INSS não cobra, nem sabe contar; Madame Natasha x Claudinho & Buchecha; José Arthur Giannotti; Tigre sem papel

ELIO GASPARI

Ciro Gomes, candidato do PS(D)B
Não será fácil, mas é possível que seja colocada de pé a candidatura do ex-governador Ciro Gomes à presidência da República. Está em curso uma espécie de roda de fogo de negociações entre ele e o Partido Socialista Brasileiro. Em público ou com alguma reserva, ele vem conversando com o governador Miguel Arraes e com o prefeito de Belo Horizonte, Célio de Castro.
Ciro tem até o dia 3 de outubro para decidir se migra do PSDB para o PSB. Ele já desistiu do projeto de coligação com o PT e acredita na viabilidade de uma candidatura alternativa. Não é doido para achar que derrota FFHH, mas sabe o suficiente para perceber que a eleição de 1998 pode servir para a criação de uma imagem e de uma base partidária sólida para a briga de 2002. Ele acredita que pode apresentar uma plataforma capaz de tirar a oposição da catatonia em que caiu.
Guardadas as diferenças e sabendo-se que FFHH nada tem a ver com o general Médici dos anos 70, o PSB poderia produzir uma anticandidatura capaz de fazer pela oposição de hoje o que Ulysses Guimarães fez pelo MDB em 1973. O Partido Socialista tem hoje dois governos estaduais (Pernambuco e Amapá), três prefeituras de capitais (BH, Maceió e Natal), dois senadores, 10 deputados e 1.342 vereadores. Com 2.137 diretórios organizados, tem base para avançar e espaço para crescer.
Tudo depende de a esquerda endossar Ciro (ministro da Fazenda durante a campanha eleitoral do real) e de sua própria situação na política cearense. Ele não fará nada que o leve a um rompimento com o governador Tasso Jereissati e, nessa trilha, poderá vir a ser candidato a governador, caso Tasso não busque a reeleição. (Ele é uma boa aposta para o ministério no Segundo Reinado.)
Não é coisa fácil. De um lado, o próprio Ciro Gomes ainda não decidiu se entra em campo. De outro, sua entrada no PSB ainda não está no ponto de se assemelhar a uma marcha triunfal. Resumindo as dificuldades de lado a lado, ensina o deputado Fernando Lyra (PSB-PE): "O Ciro ainda não decidiu se é um dissidente ou um oposicionista. Dissidência é uma coisa, oposição é outra." Por enquanto, é as duas coisas.

Religião e Estado
O ministro Carlos Albuquerque, da Saúde, é católico e, como tal, não pode aceitar o aborto. O rei Balduíno, da Bélgica, também era. Quando o parlamento aprovou uma lei que permitia o aborto, abdicou em benefício do irmão Alberto, que sancionou a mudança. No dia seguinte Balduíno, voltou a reinar, até ir (com a certeza possível nesses casos) para o céu.
Como Albuquerque não é rei, caso o Congresso dê às mulheres estupradas (repetindo, estupradas) o direito de abortar em hospitais públicos, não precisa pedir a FFHH que vete a lei. Basta pedir demissão. O que ele não pode é querer impor uma obrigação de sua fé a um Estado laico.

Bomba de retardo
O governo está fingindo que não vê o terremoto que se arma no mercado de planos de saúde. A Golden Cross, com 2,5 milhões de clientes, meia dúzia de diretores milionários e pagamentos atrasados, está sendo drenada pelos concorrentes.
Pelo andar da carruagem, vão acabar querendo meter a mão na bolsa da Viúva. Antes que isso aconteça, vale lembrar que o dinheiro dos impostos arrancados ao contribuinte destina-se a financiar o Sistema Único de Saúde, o SUS, que é grátis e está ao alcance de todos os cidadãos. O erário nada tem a ver com os contratos privados, e o Estado só tem o teto da cadeia a oferecer àqueles que vendem e não entregam.

Meninos de banco
Antes que a frase atribuída (inclusive aqui) ao economista Gustavo Franco sobre as relações do Banco Central com os meninos de rua se incruste em sua biografia, é de justiça que ele se responsabilize apenas pelo que disse.
Diante de uma pergunta a respeito da cena de um esmoler de oito anos que lhe pediu dinheiro na entrada do prédio do Congresso, ele teria dito:
"Meninos de rua não são problema do Banco Central."
Na realidade, durante a sabatina da Comissão de Assuntos Econômicos, o senador Eduardo Suplicy referiu-se ao episódio e perguntou a Franco qual proposição tinha para resolver o problema dos meninos de rua. Ele respondeu:
"Quanto ao problema de meninos de rua, não é propriamente o Banco Central que resolve."
Não houve arrogância na resposta. Da maneira que veio a pergunta, a menos que resolvesse entrar numa digressão demagógica, Franco deu resposta adequada para quem ia assumir a presidência do BC, onde se resolvem os problemas dos adultos de banco.

Férias
A partir de hoje, até o final de setembro, o signatário desta coluna se incorpora aos fatores do custo Brasil e passa a usufruir o abuso adquirido das férias. A coluna reaparecerá na edição de domingo, 5 de outubro.

Uma paixão pela tribuna do júri
Está nas livrarias "O Salão dos Passos Perdidos", com as memórias do advogado Evandro Lins e Silva, contadas às pesquisadoras Marly Motta e Verena Alberti, do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. É um bom livro, inestimável para quem tenha curiosidade pelo mundo do direito e pela vida de advogado.
Evandro Lins e Silva, que chefiou a banca que acusou o presidente Fernando Collor de Mello, tem hoje 85 anos e uma vida daquelas que não se fabricam mais. Tornou-se um dos maiores criminalistas brasileiros sem ter recebido aulas de direito penal. Foi chefe da Casa Civil e ministro das Relações Exteriores de João Goulart e ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde a ditadura o tirou.
Seu depoimento -magnificamente revisto- passa sem paixão pelos momentos de sucesso político. Fala pouco de sua vida pessoal. Dedica-se ao grande amor de sua vida: a tribuna do júri. Nela, defendeu o grã-fino Doca Street, que nos anos 80 matou com um tiro no rosto a namorada Angela Diniz, uma das mulheres mais bonitas do Brasil. Evandro conseguiu-lhe uma pena de dois anos (substituída na revanche por outra, de 15). Defendeu comunistas e nazistas, como Margarida Hirshman, locutora da Rádio de Berlim, que durante a guerra transmitia um programa em português (tomou 20 anos, mas foi indultada em dois e vivia até há pouco tempo na Alemanha). Seu prazer é contar casos de glória do tribunal.
Evandro Lins foi o advogado do jornalista Samuel Wainer no processo e na CPI em que ele era acusado de ter fraudado uma certidão de nascimento brasileira. Samuel era dono do jornal Última Hora, e a Constituição reservava aos brasileiros natos a propriedade de meios de comunicação. O caso, dos anos 50, ainda está envolto em mistério. Onde nasceu Samuel? Em São Paulo, como diz a sua certidão, ou na Bessarábia, como diziam seus inimigos?
Evandro conta que, lendo as memórias de Wainer, viu que ele admitiu ter nascido na Bessarábia. Isso o decepcionou, pois acreditava que seu cliente dizia a verdade.
Problema: as memórias de Samuel, ditadas ao jornalista Augusto Nunes, estão no livro "Minha Razão de Viver", e nelas não há a confissão da fraude.
Samuel nasceu na Bessarábia. Chegou ao Brasil com dois anos de idade. Antes de morrer, em 1986, ele pediu a sua filha Pinky Wainer que só revelasse a verdade quando já tivessem morrido as pessoas que mentiram para defendê-lo. (Um rabino dissera que o circuncidara.) Isso poderá ser feito na próxima edição do livro. Samuel deixou outra revelação em suspenso: a identidade da personalidade política que lhe pediu para sacar US$ 1 milhão de sua conta secreta na Suíça. A pessoa e o segredo continuam vivos.

O INSS não cobra, nem sabe contar
Vai mal o Ministério da Previdência. Não cobra direito de quem lhe deve e quando manda ao Congresso a lista dos caloteiros comete erros bestiais.
Respondendo a um pedido de informações do deputado Arlindo Chinaglia, o ministro Reinhold Stephanes remeteu-lhe uma lista com os cem maiores devedores de São Paulo.
Encabeçava-a, devendo R$ 308 milhões, a empresa Cotia & Kochi de Papéis. Era uma situação estranha, pois seu nome não estava nas listas anteriores de grandes caloteiros.
Resulta que a cifra, além de absurda, é falsa. A Cotia & Kochi é uma pequena fábrica de papel higiênico (Papillon) de Piedade, na vizinhança de Sorocaba. Seus advogados receberam da Procuradoria do INSS de Sorocaba a informação de que a dívida está em R$ 3,4 milhões. Tinha 150 empregados, com salários médios de menos de R$ 400. Teve a falência decretada em 1994 e anulada em outubro do ano passado. Seu proprietário, Renor Lavratte, deixou contas sem pagar, mas, ao contrário do que aqui foi noticiado erradamente (sem que esse pedaço do erro seja da responsabilidade de Stephanes), não sumiu. Está batalhando para reabrir a fábrica e já contratou 30 operários na tentativa de arrendá-la.
A reabertura da Cotia haverá de melhorar a vida econômica de Piedade, abalada pela crise da cebola e com 5.000 trabalhadores braçais desempregados (metade da mão de obra empregada há quatro anos). É uma lástima que uma empresa, tentando colocar a cabeça para fora da água, seja atrapalhada por erros desse tipo.

Madame Natasha x Claudinho & Buchecha
Madame Natasha tem horror a música. Ela socorre os desglobalizados do idioma e detesta os "anarcoglotas", pessoas que, na tentativa de demonstrar que falam muitos idiomas, acabam não conseguindo se expressar em idioma algum.
Madame concedeu uma de suas bolsa de estudos aos responsáveis pela publicidade de dois grandes lançamentos imobiliários em São Paulo, o Caesar Towers Double Space e o International Trade Center.
Nos dois casos, idéias interessantes (um "apart hotel" que funciona como escritório e um hotel integrado a um edifício comercial construído ao lado) foram massacradas pelo anarcoglotismo.
O Caesar Towers Double Space tem Business Center, Station InvestNews, Business Station, Vip Floors, Urban Space Training e Towers Service.
Todo esse pernosticismo para dizer que a cama do quarto pode ser embutida na parede, transformando-o num escritório, e que o prédio disporá de centro de convenções, terminais de notícias econômicas, telefonistas bilingues, fax e carregador de bateria de celulares nos apartamentos.
Já o International Trade Center se apresenta como "um autêntico Mixed Use" e não terá piscina, mas "swimming pool complex". A sala de ginástica se chama "fitness center". Como os prédios distam algumas dezenas de metros, o espaço entre os dois denomina-se "ITC Plaza".
Madame acha que se está consolidando, num novo tipo de publicidade, ao estilo da dupla Claudinho e Buchecha ("com você tudo fica blue").

José Arthur Giannotti
(67 anos, filósofo)
*
- O senhor é um dos melhores amigos do presidente da República e não coube no governo. O Conselho Nacional de Educação, contra o seu voto, autorizou o funcionamento da Universidade Anhembi-Morumbi, e o senhor se demitiu. Isso não é um sinal que a aliança política sobre a qual se ampara o governo é mais amarga do que o senhor pensava?
- Engano seu. Minha demissão nada tem a ver com a questão da aliança política. Tem a ver com a debilidade do Estado, com a sua natureza pastosa, com a existência de pessoas qualificadas que não saem de seus nichos e com os anéis burocráticos que controlam setores do Estado. São crostas a serviço de organismos com interesses definidos. Sei que a tendência do PFL é ficar, como também se sabe que a tendência de pessoas como eu é de sair, mas não se deve tirar casquinhas do episódio. Também não se deve superestimar o poder do presidente. Ele não teve nada a ver com isso. O secretário de Ensino Superior do MEC votou pela criação da universidade.
- Uma coisa é certa: o senhor perdeu a parada.
- Não sei. Nem sei que parada é essa. Eu acredito que o conselho não será o mesmo depois da minha saída. Se a imprensa, que gosta tanto de denunciar o governo, lançar a sua curiosidade sobre o processo de credenciamento no ensino superior, não terei perdido parada alguma. Há faculdades sem bibliotecas, que tomam estantes emprestadas quando temem a chegada da fiscalização. Há escolas que são caça-níqueis. Quando anunciei minha demissão, um dos conselheiros disse que, tendo perdido a votação, eu queria vencer no tapetão. O meu jogo é outro. Não recorro a amizades para resolver esse tipo de problema. Eu estava hospedado no Alvorada e não comentei o episódio com o presidente. Não vou ganhar no tapetão. Quero ir à luta no gramado.
- A transformação das Faculdades Anhembi-Morumbi em Universidade valia essa confusão toda?
- Não se trata do caso dessa faculdade, mas da discussão de todo o processo de criação de universidades e de centros universitários. A Constituição determina que uma universidade seja também um centro de pesquisas, algo maior que um conjunto desconexo de cursos. Nesse critério, metade das universidades existentes estão desqualificadas. Como haverá um processo de recredenciamento, podemos esperar que se venha a fazer o certo. A Anhembi-Morumbi é um conjunto de faculdades voltadas para formação de profissionais para o mercado. Não creio que seja uma instituição de má-fé. O que eu tenho certeza é que ela não é uma universidade. Não acredito que ela e suas similares devam ser beneficiadas pela autonomia e pelos direitos que a lei dá às universidades.

Tigre sem papel
Eco da passagem do deputado Richard Gephardt, líder da bancada democrata na Câmara americana:
Se FFHH telefonar amanhã para o presidente Bill Clinton e pedir para assinar um termo de adesão ao seu projeto de criação de uma zona de livre comércio americana (leia-se engolir o Mercosul), a Casa Branca não terá sequer um rascunho para oferecer.
Um projeto desse tipo, por enquanto, e por um bom tempo, simplesmente não passa no Congresso.
Nunca é demais lembrar que a plutocracia havaiana teve que implorar por mais de 50 anos para ser anexada aos Estados Unidos.

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