São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Ombudsman também pode cometer injustiças

JOSIAS DE SOUZA
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Em jornalismo, a notícia mais valiosa não está na superfície. Encontra-se nas profundezas do bastidor. O surgimento de microgravadores, menores do que maços de cigarro, transformou o conchavo em operação de risco. A tecnologia injetou luz na zona de penumbra em que o poder costuma trafegar.
O fenômeno aguçou um dilema shakespeareano da imprensa. Eis a questão: publicar ou não publicar inconfidências captadas em segredo? Em edições recentes, a Folha apresentou duas reportagens apoiadas em gravações: a da compra de votos da reeleição e a do deputado que "alugou" o mandato à suplente.
O ombudsman Mario Vitor Santos enxergou falhas em procedimentos do jornal. Ele as expôs legitimamente em sua coluna do último domingo. O texto desfiou críticas desde o título: "Gravações também podem criar injustiças".
Vitor Santos anotou: "(...) talvez repórteres e editores estejam ultrapassando o farol vermelho quando tentam mitigar a sede de notícias. É hora de avaliar um pouco mais e aumentar os controles". O ombudsman está enganado. É o que se deseja demonstrar a seguir. O objetivo não é senão o de levar esclarecimentos ao leitor.
A principal queixa do ombudsman é a suposta falta de transparência do jornal. Ele cobrou a divulgação de informações sobre a forma como as gravações foram feitas. "O problema fundamental", escreveu, "(...) diz respeito aos interesses" que movem os autores das gravações. Na sua opinião, tais interesses "tendem a ser cada vez mais relevantes".
Tanto no caso da compra de votos como no episódio do "aluguel" de mandato, as gravações foram repassadas à Folha mediante o compromisso de sigilo da fonte. Esse tipo de compromisso é, aliás, essencial para o exercício do bom jornalismo. Tão fundamental que encontra abrigo no texto da Constituição.
No jargão das redações dá-se ao mecanismo do sigilo o nome de "informação em off". A expressão vem do inglês "off the record", algo para não ser registrado, em tradução livre.
O "off" funciona como uma espécie de escafandro. Com ele, pode-se tocar o fundo do bastidor. Foi assim, valendo-se de um informante oculto, o "Senhor X", que o jornalista Fernando Rodrigues mergulhou no submundo da reeleição, içando à superfície o caso da compra de votos. Foi assim também que o repórter Lucio Vaz arrancou das coxias da Câmara o episódio do aluguel de mandato.
É evidente que os informantes do jornal cultivam os seus próprios interesses. Mas, nos casos sob análise, julgou-se que o interesse público despertado pelo conteúdo das fitas era maior do que eventuais conveniências particulares.
No que se refere às condições em que foram feitas as gravações, o limite da transparência do jornal, o ombudsman bem sabe, é a preservação da fonte. No caso da compra de votos, a Folha noticiou que as gravações foram feitas sob a orientação e a supervisão do repórter. No episódio do aluguel do mandato, disse apenas que o autor das fitas era funcionário da Câmara.
Nenhuma das publicações foi, de resto, irrefletida. Houve intenso trabalho de reportagem. Checaram-se datas, cruzaram-se vozes, confirmaram-se dados.
Os desdobramentos dos dois casos não deixam dúvidas quanto ao acerto da publicação. Não houve contestações às reportagens. Produziram-se renúncias de parlamentares, processos de cassação de mandatos. E, mais importante, o leitor da Folha foi submetido, uma vez mais, à evidência de que, no Brasil, atrás das aparências e do discurso público, há esquemas inconfessáveis.
Ressalte-se que, no caso do "aluguel" de mandato, a identidade da fonte acabou por transformar-se em segredo de polichinelo. Sem que o jornal precisasse romper o seu compromisso. A própria suplente implicada no caso esclareceu, em depoimento, que foi o filho, funcionário de seu gabinete, o autor das gravações.
O ombudsman tenta, por último, equiparar às duas reportagens já esquadrinhadas uma outra sobre supostas fraudes em licitações promovidas pela CRT (Cia Riograndense de Telecomunicações). A despeito de também envolver fitas gravadas, a notícia produzida pela jornalista Elvira Lobato não guarda semelhança com as anteriores.
O informante, neste caso, não é oculto. Seu nome foi estampado no jornal: João Batista Veras. Ele gravou diálogos com empreiteiros gaúchos. O conteúdo das fitas levanta a hipótese de formação de um conluio para fraudar licitações. A Folha foi ao Sul, obteve as gravações, ouviu os envolvidos e certificou-se dos detalhes. Descobriu que o caso é objeto de processo judicial. E noticiou-o. Caberá à Justiça dizer se são culpados ou inocentes os empresários gaúchos. Ao jornal, cumpre noticiar o resultado do processo.
É pena que, com tantos erros à sua disposição, o ombudsman tenha optado por bater em três acertos da Folha.

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