São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Vanguarda de uma nova cidadania

TARSO GENRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

1. "O produto final do neoliberalismo não é o renascimento da economia liberal, e sim o incremento do privatismo, sem redução do oligopolismo" (1). Para mascarar politicamente este projeto a globalização exige uma ideologia (a do caminho único) fundada numa política universal (do Consenso de Washington). O objetivo desta máscara é revisar os valores da democracia, introduzindo a manipulação como elemento vital para dissolver os signos da modernidade. Seu fim possível é uma forma específica de totalitarismo, cuja resistência só pode se dar em nome da democracia, da liberdade, dos direitos individuais e coletivos e do direito de inclusão, que é profundamente subversivo, porque o projeto neoliberal não pode garanti-lo (*).
2. Pode-se conceber o tempo, hoje, como tempo global-instantâneo, não mais como um tempo composto por processos que se articulam de maneira sucessiva. É possível -por isso- conceber a história como movimento concentrado em movimentos globais do dinheiro, cuja síntese econômica, "a não limitação da riqueza dos ricos", constrói uma síntese ética: a ilimitação "para o seu cinismo em relação aos pobres" (2). A universalidade da indiferença dos poderosos globais repousa no poder abstrato do capital financeiro. Ele se concretiza por razões calculadas por vantagens absolutas -não mais simplesmente comparativas- geradas por sua ordem política no mundo.
3. O surgimento de novas "classes" trabalhadoras e novas formas de aquisição, pelo capital, da força de trabalho e do conhecimento, afirmam uma tendência oposta ao previsto pelo "Manifesto Comunista". Não há uma crescente simplificação da sociedade de classes, bem como o proletariado não se concentra "em massas cada vez maiores". O velho modelo de desenvolvimento industrial persiste, mas ao lado de outro mais dinâmico, que aumenta a exclusão e desenvolve formas alternativas de opressão.
4. Junto à classe trabalhadora tradicional formam-se "classes trabalhadoras", compostas por grupos dispersos ou articulados em redes de serviços, trabalhando isoladamente ou em pequenos grupos. Surgem milhões de trabalhadores precários ou autonomizados, em função da própria natureza da demanda. Eles se originam dos novos processos de produção. Surgem ainda os ex-trabalhadores, "dispensáveis" para a produção da "sociedade informática", sem perspectivas fora da precariedade sistemática.
5. Digitadores autônomos, trabalhadores da produção do lazer, prestadores de serviços para idosos, crianças e deficientes; assalariados da informática, operários cooperativados, empregados em serviços terceirizados; trabalhadores nas áreas da pesquisa e publicidade, bem como um novo "exército de reserva" de milhares de jovens: todos portadores de uma nova cultura de trabalho ou atividade, para a sobrevivência, que se vincula a um novo modo de vida: nova linguagem, nova estética, nova ética, novas formas de compreender a "polis".
6. Os trabalhadores "de carteira" do mundo do trabalho clássico passam a ser portadores de uma cultura e uma subjetividade coletiva em declínio. A crise de impotência do seu sindicalismo traduz-se como uma crise de estratégias e de formulação política. Sua experiência cotidiana não consegue abranger a multidiversidade do novo mundo do trabalho, que, ao mesmo tempo, invade e fraciona a sua "velha" fábrica moderna. Não há mais saída para eles dentro da tensão social-democrata tradicional -mais salários, mais seguridade-, porque o que está em jogo é a própria existência do emprego como forma jurídica hegemônica. Só um salto para uma radical politização das suas lutas pode reinseri-los na luta social: lutas por um novo modo de produzir, novo modo de vida e por uma cultura de solidariedade que supere os limites da fábrica (**).
7. Neste contexto, as "classes trabalhadoras" assumem uma identidade negativa. As velhas referências não funcionam e as novas ainda não foram constituídas pelo sujeito. Vivem "um mundo cujas profundíssimas e aceleradas transformações começaram a deixar para trás a velha estrutura de classes, sem que, por isso, (todos) saibamos muito bem (...) quem são os novos dominadores e quem são os novos dominados" (3). Suas vanguardas sabem -porém- que os donos do seu destino continuam sendo os grandes capitalistas, mas sua representação abstrata no capital financeiro globalizado dificulta o confronto para a formação de uma nova identidade coletiva do mundo do trabalho.
8. O marxismo ortodoxo -contraposto ao próprio marxismo de Marx- permaneceu fixado na visão messiânico-proletária. A categoria "proletariado" tornou-se, ela mesma, um conceito: o conceito de revolução (4). Pode-se dizer hoje, que o conjunto dos trabalhadores, os do "novo capitalismo" e os do "velho capitalismo", poderão tensionar de maneira diversa a questão da liberdade. É possível que, para o novo mundo do trabalho (forjado na falsa autonomia da terceirização e da precariedade), a idéia de sociedade futura penda mais para a proposta de "uma comunidade de indivíduos livres"; e que, para os trabalhadores agrupados na velha fábrica moderna, esta sociedade do futuro apresente-se mais como "uma comunidade livre de indivíduos associados" (5).
9. A antiga identidade da modernidade, assim, firmada pela nitidez dos interesses de classes contrapostas, "desmancha no ar". A fragmentação e a alienação de grupo conjugam-se com a crise da afirmação da identidade pela lógica dos Estados, substituída pela identidade da lógica dos mercados. No sentido contrário da fragmentação há -porém- o surgimento aberto de outras identidades: "transterritoriais" e "multilinguísticas" (6), e a sua base real é a mesma da ditadura do mercado globalizado.
10. Por isso, informação, lazer, produção, consumo irracional e vida pública constroem o estado de uma nova subjetividade: "Para articular essa produção social geral, o capital tende a investir cada vez mais na indústria da informação. Como 'a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção' (Marx, 1974: 115), trata-se de organizar a sociedade, tanto para produzir quanto para consumir bens materiais cada vez mais distanciados das necessidades humanas básicas (comer, dormir, vestir-se). (...) O processo de produção deixou de ser apenas aquilo que se realiza dentro das fábricas. (...) Realiza-se (..) em todo lugar onde o indivíduo social é adestrado para se incorporar a uma rotina produtiva qualquer e, ao mesmo tempo, dialeticamente, é 'construído' para desejar usar o produto que, socialmente, ajudou a fabricar. Esta construção é, numa palavra, cultural. Razão por que, nestes tempos contemporâneos, cultura é economia" (7).
11. Este impulso inovador-conservador da ideologia neoliberal cria o fetiche do renascimento da economia liberal, cujo imaginário ampara-se nas atuais condições materiais da existência e numa nova subjetividade mais alienada do mundo do trabalho. É um impulso que tensiona no sentido de dissolver o conceito de liberdade como conceito que pode realizar-se na vida comunitária, e passa a associar a liberdade à pura individuação. Criar um movimento que contenha, como processo social real, os gérmens de um novo modo de vida, construindo uma "nova vida moral" (Gramsci) e uma nova articulação Estado-sociedade, é operação de governo e de oposição socialistas, a partir de um "programa mínimo" que abra a atividade social e a consciência da cidadania para uma nova ordem.
12. As condições básicas para a ofensiva de uma esquerda contemporânea já estão se desenvolvendo pela resistência fragmentária dos diversos grupos sociais dispersados na exploração com: a) crescente legitimação das preocupações agroambientais (8); b) crescente legitimação da participação das comunidades pobres nos negócios públicos; c) crescente legitimação política das características de gênero e cultura; d) crescente (re)legitimação do Estado diante da crise de coesão social promovida pelo neoliberalismo; e) crescente legitimação da luta pela socialização do trabalho (ou da "atividade") para ensejar sobrevivência digna; f) crescente (re)legitimação da intelectualidade crítica em escala mundial.
13. Considerada a necessidade de uma nova política radical, que consiga mediar a tragédia do presente com a utopia de um mundo justo, fundado na possibilidade de igualdade social, pode-se afirmar que, "vista de uma forma abrangente, uma estrutura de política radical se desenvolve segundo uma perspectiva de realismo utópico e em relação às quatro extensas dimensões da modernidade. Combater a pobreza, absoluta ou relativa; restaurar a degradação do meio ambiente; contestar o poder arbitrário; reduzir o papel da força e da violência na vida social -são esses os contextos direcionadores do realismo utópico" (9), aos quais deve ser somada a democratização da informação, como bem público fundamental para a composição de uma subjetividade coletiva solidária.
14. O partido moderno do socialismo contemporâneo não será mais o partido cuja espinha dorsal repousa principalmente nas fábricas. Será o partido que organizar, na sociedade civil, as condições para que as classes trabalhadoras novas e antigas, dispersas ou ainda agrupadas, tornem-se a vanguarda de uma nova cidadania. Seu propósito objetivo será, ao mesmo tempo, instituir a democratização e o controle social do Estado e a construção de instituições públicas autônomas que apontem para o desenho de um novo Estado democrático.

Notas:
1. Lago, Benjamim Marcos. "Dinâmica Social - Como as Sociedades Se Transformam", Ed. Vozes, Petrópolis, 1995, pág. 235;
2. Dahrendorf, Ralf. "O Conflito Social Moderno - Um Ensaio Sobre a Política da Liberdade", Jorge Zahar Editor, Edusp, SP, 1992, pág. 30;
3. Morales, Angel Garrorena. "Representación Politica y Constitución Democrática", Editorial Civitas, Madri, 1991, pág. 108;
4. Santos, Milton. "Técnica, Espaço, Tempo - Globalização e Meio Técnico-Científico Informacional", Ed. Hucitec, 2ª ed., SP, 1966, pág. 172;
5. Bobbio, Norberto. "Igualdade e Liberdade", Ediouro, RJ, 1996, pág. 72;
6. Canclini, Nestor Garcia. "Consumidores e Cidadãos - Conflitos Multiculturais da Globalização", Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996, pág. 35;
7. Dantas, Marcos. "A Lógica do Capital-Informação", Ed. Contraponto, RJ, 1996, pág. 31;
8. Veiga, José Eli da. "A Transição Agroambiental nos Estados Unidos", em "Reconstruindo a Agricultura", Jaicione Almeida e Zander Navarro (orgs.), Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, pág. 129;
9. Giddens, Anthony. "Para Além da Esquerda e da Direita", Ed. da Unesp, 1996, SP, pág. 279.

* A idéia da formulação de um projeto "pós-comunista" e "pós-social-democrata", para o PT, é de Marco Aurélio Garcia.
** Os estudos que constam no livro "O Mundo Depois da Queda", organizado por Emir Sader (Ed. Paz e Terra) são indispensáveis para a crítica do socialismo real e para pensar em um novo projeto de sociedade.

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