São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Assim seja!

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Deus é testemunha de que nada tenho contra os telefones celulares. Minhas bestas-negras preferenciais, nos últimos tempos, são o neoliberalismo, a globalização e um sujeito que volta e meia me escreve comprida epístola provando que Elvis Presley não morreu.
A mania do celular ainda me espanta. Outro dia, no aeroporto, vi um sujeito falando atrás de uma pilastra, dizendo palavras doces, coisas que costumam ser ditas na cama, naquela hora em que vale tudo. Disfarçadamente dei um jeito de ir espiar a parceira, ver se ela merecia tamanho arroubo em local público, mas o cara estava falando sozinho, olhando o faxineiro que varria com má vontade o piso de mármore.
Pior mesmo foi na missa de sétimo dia de um conhecido. Na hora da comunhão, um tipo de terno e gravata, com pinta de executivo médio, entrou na fila dos comungantes. Ia compenetrado para receber o corpo de seu Deus em forma de sacramento, devia estar mergulhado em preces profundas.
Quando o sacerdote ofereceu-lhe a hóstia, justo nesse momento alguma coisa apitou dentro dele. Tirou do bolso o celular. Do outro lado do sem-fio, um mecânico dava o orçamento de um conserto no carro do camarada, todos ficamos sabendo que o mecânico era um ladrão, foi ameaçado pelo Procon e mais não ficamos sabendo porque o padre era idoso, fatigado de anos e anos distribuindo hóstias por aí, nem notou.
Meteu-lhe o corpo de Deus por dentro da boca, "que o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo guarde tua alma na vida eterna, assim seja!"
O sujeito ficou embaraçado, ia explicar que injeção eletrônica não merece revisão no carburador, era ao mesmo tempo um absurdo e um crime. Com a hóstia dentro da boca ficou difícil desenvolver o raciocínio. Dividido entre Deus e o mundo, sem querer autorizou o orçamento criminoso e entrou em clima de piedade, repetindo com o padre: "Assim seja!"

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