São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Respeitem as mulheres

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

A polêmica em torno da aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, do projeto de lei que regulamenta o atendimento aos casos de aborto legal na rede do SUS traz à baila estranhos paradoxos.
O primeiro é a confusão que se estabeleceu entre a aprovação dessa lei e a legalização do aborto.
Trata-se, aqui, do já consagrado aborto legal, permitido em caso de gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a mãe. Aquele que não precisa ser legalizado, pois já o foi no Código Penal de 1940.
Esse aborto legal continuou, na prática, a ser tratado como se a ele as mulheres não tivessem direito, a rede pública recusando-se a prestar-lhes atendimento. Exceção feita ao Estado de São Paulo, onde alguns hospitais cumprem a lei, a rede de saúde brasileira tem vivido em perfeita ilegalidade, recusando às mulheres um direito que a legislação lhe concede há mais de 50 anos.
Assim, faz-se uma lei para fazer cumprir outra lei e, no bojo desse debate, invoca-se a "ilegalidade" do aborto legal, aquele que já é legal há meio século.
Paradoxo? Mais do que isso, um profundo desrespeito pelas mulheres. Pois quem, em sã consciência, ousaria exigir de uma mulher que carregue consigo o fruto de um estupro? Que insensibilidade moral autorizaria quem quer que fosse a pedir a uma mulher que seja a mãe de um feto que lhe foi despejado no ventre a golpe de violência e humilhação?
Chegamos então ao segundo paradoxo, quando, em nome do direito à vida, pede-se à mulher que se deixe morrer. É preciso um grande desprezo, um profundo desamor pelas mulheres, nenhum respeito a suas vidas para ousar exigir delas essa vocação de martírio.
Acho que já não é sem tempo que a sociedade respeite as mulheres, considere que seus direitos são direitos humanos. O direito à integridade de seus corpos, que não podem ser violados e sobre os quais elas devem ter o poder de decisão que qualquer outro ser humano tem sobre seu próprio corpo. O direito a saúde, a terem seus corpos tratados com dignidade quando, por infelicidade, uma gravidez se complica, pondo em risco a vida da mulher.
Ninguém ignora que, no Brasil, a rede pública atende sobretudo aos pobres, já que as outras, as mulheres que têm recursos, buscam socorro sem hesitação na rede privada e abortam, e escapam sem risco. No caso de estupro, são as mulheres pobres que vivem o pesadelo de ver impor-se a elas um feto que não é delas -que é mais que um acidente, é um desastre-, indefesas contra essa fatalidade.
É preciso que cesse o obscurantismo e que a rede pública de saúde desempenhe o seu papel de acolher mulheres necessitadas, tratando-as com o carinho e a atenção que uma pessoa estuprada ou em risco de vida merece.
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara mostrou sensibilidade e bom senso, não se deixando impressionar pelo espetáculo de histeria explícita dos grupos antiaborto, que tentam confundir a opinião pública desviando o foco do debate atual, que é simples e de facílimo entendimento: se o Código Penal autoriza as mulheres a abortarem nesses dois casos; se o aborto é um ato médico que deve ser praticado em boas condições de higiene e de acolhida psicológica àquelas que estão sofrendo; se as mulheres pobres só contam com esse atendimento médico na rede pública -já que, para beneficiar-se dela, pagam impostos-, a rede pública deve a elas, como manifestação de respeito e não como favor, o socorro de melhor qualidade. O mais é cortina de fumaça com que os fundamentalismos de todo gênero tentam encobrir um ancestral desprezo pelas mulheres.
Espera-se do plenário do Congresso Nacional, quando da votação da lei, a mesma coragem e a mesma lucidez que inspiraram a Comissão de Constituição e Justiça.

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