São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Antes que a morte nos separe

DEBORAH GIANINNI; JONI ANDERSON

Às vésperas das bodas de prata, mulheres tomam coragem e rompem casamentos fracassados
POR DEBORAH GIANNINI E JONI ANDERSON*
Nunca é tarde para terminar. A afirmação, estranha à primeira leitura, é o preceito adotado por casais que passam 15, 20 ou até 30 anos juntos e... decidem se divorciar.
Após décadas de convivência e com a velhice se aproximando, esses homens e mulheres optam pelo caminho mais difícil: começar uma vida nova quando a maioria dos amigos já embala os primeiros netos.
Raríssimos no passado, esses casos são cada vez mais comuns. Em primeiro lugar, porque as mulheres, embora criadas na crença de "uma união para toda a vida", não aceitam mais engolir mágoas apenas para manter o casamento.
A dona-de-casa Athaly Camargo Pedrosa, 63, é uma dessas senhoras. Nascida em uma família numerosa do interior de São Paulo, saiu da casa dos pais para viver com o marido, direto, aos 22 anos.
Na nova casa, no bairro do Ibirapuera, teve os dois filhos e passou 33 anos cuidando da família. Julgava-se incapaz de morar sozinha. "Jamais passou pela minha cabeça viver sem o meu marido. Sabia que os filhos um dia iriam embora, mas achava que ficaria com ele para sempre", diz.
A relação, que se desgastara nos últimos anos de convivência, trincou de vez quando o casal discutiu seriamente por problemas financeiros. "Eu sou pé no chão, racional. Ele é o oposto: aventureiro, queria dar passos largos, ir para o mundo. Acabou sendo desleal comigo e fiquei muito magoada", afirma.
Mesmo com problemas sérios de saúde e ainda apaixonada pelo marido, Athaly pediu a separação. "Geralmente, quem desfaz o casamento é a mulher. Os homens aprontam muito, mas na hora 'H' não têm coragem", diz.
A decisão não implicava nenhuma esperança de novos relacionamentos. "Para não sofrer, coloquei na cabeça que dali em diante seria uma viúva."
O paisagista José Antônio Carlos da Cunha, 58, estava se preparando para as bodas de prata, quando foi surpreendido pela separação. "Meu filho, que na época tinha 18 anos, sugeriu: 'Quando é que vocês vão se separar?'", conta ele.
Quando Cunha procurou um advogado, descobriu que sua mulher já havia entrado com o pedido de separação. "Acho que ela devia ter algum motivo para tomar essa atitude", diz.
O casamento já não ia bem havia dez anos, mas a possibilidade de um divórcio não passava pela cabeça do paisagista. "Eu achava que a separação servia para outra família, não para a minha", afirma.
O levantamento feito pela Revista, com 15 casais, mostra que o caso de Cunha não é exceção: a iniciativa da separação costuma partir da mulher. "Normalmente, quando ela tem outro homem, tenta se divorciar e por às claras. O homem é mais acomodado, prefere não separar e continuar com um casamento ruim, mesmo com uma relação extraconjugal", confirma a advogada Laís Amaral Rezende de Andrade, especializada em família.
Priscila Corrêa da Fonseca, também especialista nessa área e com cerca de 30 novos clientes todo mês, diz que 90% dos pedidos de separação que atende partem da mulher.
O depoimento do vendedor aposentado Aparecido Milton Piccirilli, 71, corrobora essa hipótese. Ele conta que esperou a mulher expulsá-lo pela segunda vez de casa para concretizar uma separação que ele mesmo desejava havia cinco anos. "Apesar dos problemas, nunca havia pensado em separação. Venho de uma família tradicional, cheia de convenções. Queria esperar, pelo menos, minha filha completar 18 anos", diz.
Exceção entre os divorciados, Piccirilli admite parcela de culpa no fracasso do casamento. "Trabalhava muito para dar uma vida estável à família e acabei me afastando de casa, não tinha tempo. Eu era muito vaidoso. Achava que assim estaria ganhando a minha mulher, mas estava perdendo. Se fosse hoje, substituiria esse luxo todo por outras coisas", conta.
Além da menor capacidade feminina para "engolir sapos", os casamentos longos muitas vezes acabam porque, com a saída dos filhos de casa, homem e mulher entram em crise.
"Um casamento começa com dois, mas, com os filhos, vira três, quatro. Depois de 20 anos, quando o relacionamento volta a ser a dois, o homem e a mulher já viraram estranhos, se perderam. O entusiasmo do 'enfim sós' converte-se na dúvida de 'quem é mesmo você?'", diz a psicanalista Madalena Ramos, coordenadora do Núcleo de Terapia de Casal e Família da PUC-SP.
Os filhos, quase sempre, servem de pretexto para arrastar um casamento já bastante desgastado.
O contador Jair Leal, 54, e a dona-de-casa Nelma Alves, 50, terminaram o casamento de 26 anos em 1993.
Com três filhas criadas e o "dever cumprido", chegou a hora da separação.
"Os filhos estão em primeiro lugar. Seguramos a barra por causa das meninas. O fato de elas estarem adultas pesou na minha decisão", diz Nelma, que fez o pedido de separação.
Ex-marido e ex-mulher já pensavam no rompimento havia dez anos. "É muito ruim quando se perde a afinidade e se começa a fazer as coisas por obrigação. Eu me sentia apenas a pessoa que supria a casa, então, eu não precisava estar presente", diz o contador.
Jair acha que não cabia a ele "provocar, nem aceitar uma separação". "A gente vem da tradição da primeira e única união, mas a vida mostra que não é bem assim. A gente vai segurando. Isso acontece com a grande maioria."
A filha mais velha dos dois já casou e descasou. A do meio casou, e a caçula mora com a mãe. Enquanto os pais "aguentaram" 26 anos, a filha mais velha permaneceu sete anos casada.
Segundo Nelma, a diferença entre a sua separação e a da sua filha é que a da menina ela já previa porque os dois tinham "incompatibilidade de gênios".
A dona-de-casa Cleide de Melo, 53, casada durante 26 anos, foi outra que esperou as "crianças ficarem maiores" para sair de casa. "Quando o menor fez 12 anos, decidi abandonar meu marido, que não andava bom da cabeça. Não me arrependo. Até hoje, sete anos depois, dois dos meus três filhos se recusam a falar comigo porque não entendem a minha atitude. Mesmo assim, faria tudo de novo", diz.
Os depoimentos das "senhoras separadas" mostra que elas foram contaminadas pelas expectativas que hoje rondam o casamento. Criadas para serem exímias donas-de-casa e mães -enquanto os homens deveriam ser bons provedores-, elas passaram a reivindicar atenção, carinho, satisfação sexual e independência. "Hoje espera-se muito mais de um casamento. Espera-se até que ele preencha o vazio provocado pelo arrefecimento dos ideais políticos e religiosos e pelas dificuldades de se destacar no mercado de trabalho. Por isso, há tanta frustração", diz Magdalena Ramos.
O próprio aumento da longevidade deu a homens e mulheres novas expectativas em relação à velhice. Com grandes chances de chegar aos 70, 80 anos ainda produtivos, não há por que prolongar o sofrimento a dois.
A escrevente Eunélia Guimarães, 56, diz que "começou a viver depois de virar avó". "Meu marido bebia e era muito agressivo. Eu fazia tudo para agradar, mas ele nunca estava satisfeito. E ainda tinha uma amante havia 13 anos", diz Eunélia, 25 anos de casada, dois filhos e cinco netos.
Hoje, ela afirma não ter saudade dos tempos de casada. Extrovertida, dança quase todos os dias nos bailes da saudade e diz ser muito paquerada. "Eu me sinto bonita e sei que posso reconstruir minha vida", afirma.
O alívio com o fim do casamento e a falta de arrependimento em relação ao divórcio, descritos por Eunélia, são comuns em todos esses casos. Athaly conseguiu reorganizar sua vida, diz ter perdido o medo da solidão, mas não quer pensar em outro relacionamento ("Não quero mais me envolver. Entrei de coração uma vez e me machuquei.").
Piccirilli mantém um namoro que já dura 14 anos, mas em casas separadas ("Assim não discutimos, não encrencamos e não fico irritado se ela ronca ou se vira na cama"). Cleide de Melo fez novas amizades e, na terça-feira passada, conversava animadamente com um pretendente em uma festa no clube Piratininga (Higienópolis). Eunélia gosta de dançar e paquerar, mas não quer casar de novo.
Dos "ex-s", quase todos guardam mágoas e querem manter distância, mesmo depois de décadas de convívio. Athaly fala pouco com o ex-marido e ainda briga na Justiça com ele por dinheiro. Piccirilli só fala com a ex-mulher pelo telefone porque "morreram a amizade e o companheirismo". Cleide não gosta nem de lembrar dos anos de casada. E Eunélia até conversa com o ex-marido, mas diz que quer esquecer "dos seus tempos de Amélia".

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