São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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Débora Cristina leva o MST ao banheiro da classe média

FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA

"O Rei do Gado" levou o movimento dos sem-terra à sala de jantar da classe média brasileira; agora, a revista "Playboy" promete conduzi-lo ao banheiro.
As semelhanças entre Patrícia Pillar, a Luana da novela, e Débora Cristina, a sem-terra que assinou contrato para tirar a roupa, vão muito além da beleza. Nos dois casos, o conflito social que elas de alguma forma encarnam se resolve no âmbito doméstico, no aconchego do lar. Faz parte da tradição brasileira: o que não parece ter solução à vista no espaço público, a gente leva para casa e, com jeitinho, acaba acomodando.
"O Rei do Gado" foi o grande responsável pela reviravolta da imagem pública dos sem-terra. Até então, eram vistos basicamente como primitivos, baderneiros, porta-vozes extemporâneos do "perigo vermelho". A novela da Globo os "humanizou". Por trás da carranca de um Stédile, das vociferações de um Rainha, surgiu de forma inesperada a figura ao mesmo tempo doce e arredia, tímida e corajosa da bóia-fria Luana, a musa da justa causa, a mártir dos oprimidos.
Não havia, no entanto, razões para comemorar essa metamorfose. O preço que o MST pagou para chegar regenerado ao horário nobre foi o de ver suas reivindicações transformadas em pouco mais que chantilly de um melodrama como outro qualquer. O verniz realista, a pretensão épica da novela esconderam o essencial: Luana era uma mocinha e queria se casar; terminou "salva" nos braços de Bruno Mezenga, o homem do latifúndio.
O que, em suma, a novela nos deu foi a redenção imaginária de um país a partir de uma historinha de amor tão inverossímil e tola quanto as dos dramalhões do SBT.
A história se repete...
Luana sucumbiu ao amor; o país agora sucumbe à nudez de Débora Cristina. Por trás dessas histórias simétricas, uma real e outra imaginária, confirma-se mais uma vez a tese que Gilberto Freyre desenvolveu em "Casa Grande & Senzala", segundo a qual a violência brutal da formação social brasileira foi historicamente diluída na cama, amaciada por meio da miscigenação e das relações promíscuas entre escravos e senhores.
Débora Cristina representa a figura contemporânea da "negrinha". Será acolhida e desejada desde que seja "privatizada" e não tenha o mau gosto de trazer para o convívio das elites o lado abjeto da "senzala" de onde saiu.
Vivemos uma época em que a miséria se tornou uma questão sobretudo estética. Não é à toa que um ilustre porta-voz dos novos tempos escreveu, ainda em 95, que "já há uma filosofia da miséria, uma poética dos excluídos".
Desincumbdo do compromisso de nos livrarmos da miséria, podemos agora estilizá-la, consumi-la, descobrir suas potencialidades, sua graça, enfim, sua "poética".
Inventados dessa forma pela mídia, os sem-terra vão se tornando aos poucos um precioso filão das colunas sociais, um apêndice do "mundo fashion".
Já podemos ver Débora Cristina sendo entrevistada por Amaury Jr., participando como jurada de programas de auditório, fazendo uma ponta no "Planeta Xuxa".
Nesse compasso, não é absurdo imaginar que ela em breve receberá outra proposta irresistível. Quem sabe não seja convidada a abrir sua casa para "Caras".

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