São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 1997
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'A Outra Face' é um matadouro na Disneylândia

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fui ver o "Face Off" ("A Outra Face"), do John Woo, o celebrado chinês que invadiu Hollywood, com seus filmes de ação, atual papai "cult" dos cinemaníacos.
Sinto desapontá-los, amigos, mas acho uma bosta. Saio do cinema assustado. Será que estou ficando burro? "Tu o disseste", rosnarão meus inimigos.
Às vezes, a gente pensa que esta época "liberal" aboliu a voracidade ideológica do capitalismo. Nada disso. É imensa, brutal, a propaganda ideológica que se esconde atrás destes "video games". Saio do cinema varado de certeza: "estes caras ainda vão destruir o mundo!". Atenção. Não estou sendo "nacionalista", nem humanistazinho de galinheiro. Não. Eles é que são ideológicos.
Hollywood conseguiu nos passar a idéia de que eles só fazem "divertimentos", que são inocentes: "That's entertainment". Aqui, ó! (Ohhh, logo eu que odeio a "teoria conspiratória" da história). É conspiração sim. É uma bula minuciosa para vender ideologia e produtos. Claro que eu conheço o "charme" venenoso de Woo. Sei bem dos detalhes "cult", do "frantic cutting" de Woo. Sei dos deleites dos fãs: "oh! quão pós-moderno, quão cruelmente atual! Ele filma além das éticas, além das caretices da bondade, além dos limites do bem! Oh, que 'decoupage'! Oh, que imaginação nos cortes com as sete câmeras! Que conceito nos ângulos, quase de um cínico cubismo!".
Woo tem apenas a eficiência de um chinês subserviente e esperto. Ele pensou em Hong Kong: "Eu vou vencer em LA. Vou ser mais 'americano' que eles, eu vou dar o que eles nem sabem. Vou transformar a violência numa falsa estética 'hype'. Num pós-rococó informático-digital!".
E a turma embarca.
"Parece um 'Pulp Fiction' barra pesada!", dizem os cinéfilos. Mas, não é. O Tarantino é um grande artista que faz a ridicularização da violência, o absurdo da bruta vagabundeza do mundo americano de hoje.
"Pulp Fiction" é genial. Tem um roteiro genial onde tudo dá "errado", de propósito, como crítica à dramaturgia oficial. Neste Woo, como nos filmes de ação reacionários, tudo sempre dará certo para o eficiente herói americano. "Pulp Fiction" ri dos heróis. Woo elogia o mito do careta supereficiente, este ícone da americanidade, o infalível, o eterno super-homem, o que não perdoa o inimigo. "Pulp Fiction" mostra o ridículo desta pretensão; é influenciado por Godard e Brecht. Woo, é influenciado pelo video game. A estética apátrida de Hong Kong.
"Sim, mas não é bem filmado?" Não acho. Woo é um careta disfarçado de veloz, um acadêmico disfarçado de pós-utópico "cult". Nada contra se exibir a violência do mundo. Tudo contra louvá-la. "Pulp" não a louva; transforma a violência numa chanchada de erros, mostrando como a América se acha uma utopia do funcionamento perfeito, mas onde sempre algo entope ou vaza, nem que sejamos nós, os "da merda", aqui da América Latina. Woo, ou melhor, seus patrões, não querem o Mercosul; querem a Alca. O Tarantino é Mercosul. Woo filma a explosão de corpos, o sangue, os cadáveres voando, as lanchas em fogo (por que os americanos gostam tanto de explodir a América?) criando uma "estética da calamidade".
Se antes, os Rambos davam à platéia o sádico prazer de ver a morte em detalhe, Woo vai mais longe: faz a "brincadeirinha cult" da morte, uma espécie de inocência do mal, uma busca de "beleza" nas chamas, nos gases, nos órgãos expostos. "Tudo é de mentirinha, sejam modernos, o 'hype' é este, veloz, cruel, simultâneo", dizem. Só que esta "modernidade" trabalha pelo elogio da familiazinha careta, da esposa abnegada, da "filha problema" que se arrepende, do bom policial contra o mau psicopata inteligente (depois que acabou o comuna mau, temos agora o psicopata terrorista que quer atrapalhar a cadeia da produção e do consumo). O "happy end" já sabemos que virá, mas queremos mesmo é gozar o inferno dos corpos mutilados. A narrativa do filme de violência parece filme pornô. A psicologia, a trama são meros pretextinhos para mostrar (nos violentos) a mutilação e (nos pornôs) a penetração. O enredo é um pretexto para os efeitos especiais, os atores um pretexto para a falta de personagens, a ação um pretexto para vender ao mundo a tecnologia dos computadores ou dos superfuzis. Depois dizem que isso não tem nada a ver com a violência dos nossos morros. Isso é "globalização" da brutalidade. Entre o crime e o mercado há um limite que é quase nada. Estes filmes visam a nos intimidar. É assim que eles farão conosco, se não comprarmos seus produtos.
Para o filme de porrada típico, a violência é fruto de um malvado ou louco; nunca é culpa do sistema. No filme brasileiro a violência vem da fome ou carência. Aqui, a violência é um mal. Lá a violência é o bem, a serviço dos bons.
Aliás, não deixem de ver o extraordinário filme brasileiro que entrou em cartaz: "Os Matadores", de Beto Brant, e ainda "Céu de Estrelas", de Tata Amaral. Dois filmaços. Muito melhores que estas bostas tecnológicas que nos deslumbram.
Os filmes violentos americanos estão virando uma espécie de "Auschwitz Chic". Quando teremos cenas em câmera lenta dos judeus morrendo no gás, flutuando em seu desespero plástico, rostos em pânico, bocas buscando ar, braços torcidos, gritos calados, os rostos azuis de sufoco etc.?
"Ah...mas o Woo é diferente", dizem os jovens cult. "Ele faz a arte das catástrofes, dos crimes e efeitos especiais..." Arte onde? Nas pombas em câmera lenta flutuando diante dos corpos morrendo? Ora, isso é kitsch de quinta, um barroco eletrônico inferior? Onde? Nos cortes frenéticos como um videoclipe de câmara de gás? Onde? Nas lanchas em fogo voando na água? Onde o charme cult disso? Esta velocidade só visa a afirmar a crua invencibilidade do mundo americano. "Face Off" é de uma eficácia que apavora. Por que tanta eficiência fílmica? Por que?
Nos roteiros feitos em computador, não por humanos, se busca uma metáfora da sociedade americana, onde nada pode falhar, nem um buraco pode existir. É porque nada pode se infiltrar numa pausa ou ritmo humano para que nada empane a atenção absoluta do ritmo das "coisas" deste sinistro mercado. A "dúvida" é antiamericana; a dúvida é perigosa, pode surgir um Mercosul. É preciso a Alca do controle total. Não é arte coisa nenhuma. A arte fala da dúvida, do medo, da morte. A arte pressupõe uma imperfeição qualquer, uma fragilidade que se evoca, mesmo na beleza das estátuas perfeitas. "Face Off" é algo próximo do eletrochoque, da anestesia, um "mix" de disneylândia com matadouro. E, incrivelmente, tantas mortes são para fingir que não existe morte (nem arte) pelo excesso de exposição dela. Sacaram o lance? Fingindo combater o mal, praticam-no sem parar na narrativa indecentemente brutal. Os homens são tão "coisificados", morrem como lanchas ou carros explodindo que gente e coisa ficam iguais, suprema vitória da "reificação". Dá-lhe Adorno...
Por isso, eu saí do cinema com a estranha impressão de que eles vão acabar destruindo o mundo, nesta paranóica fome de controlar o destino. Meu Deus, quando virá uma nova revolução hippie, flores, delicadeza, arte, música... Ah, Deus, dê-nos de volta um pouco de humanismo!

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