São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 1997
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Um momento de definições

LUIZ SOUTO MAIOR

Mais do que pelo seu objeto ostensivo, o recente incidente Brasil-Argentina em torno da projetada ampliação do Conselho de Segurança da ONU é significativo pelo que revela sobre a percepção que cada um dos dois países tem do mundo e da posição do outro em suas respectivas políticas internacionais.
A idéia de ampliar a composição do conselho surgiu da evidência de que ele não mais se adapta à atual realidade internacional. A relevância efetiva de uma cadeira permanente no conselho só se tornará clara, porém, quando se definirem as regras de votação do órgão ampliado, estabelecendo que países terão o poder de veto.
Ao falar-se -embora ainda informalmente- de novos membros "permanentes" como "representantes" das três regiões referidas, introduziu-se uma alteração no raciocínio em que hoje se alicerça a composição daquele órgão. Até agora, o critério de distribuição geográfica apenas se aplica aos "não permanentes".
É claro que nada impede tal alteração, já que se contempla uma reforma da Carta. Trata-se, porém, de elemento novo, que, em vez de diluir, tende a exacerbar as rivalidades associadas à escolha de novos membros permanentes, já que, em cada área, ela adquire o sentido de uma espécie de certificado internacional de liderança regional.
Na América Latina, era previsível que pelo menos o Brasil e a Argentina se considerassem candidatos válidos à posição de "representante" regional.
A Argentina -presumivelmente por avaliar escassas as probabilidades de que a escolha lhe fosse favorável- passou a defender a tese de uma representação rotativa latino-americana. Opõe-se, portanto, formalmente à escolha de um país da região, no caso o Brasil, como membro permanente.
Por sua vez, o Brasil -talvez mais confiante no seu peso geográfico, econômico e diplomático- optou por uma tática discreta. Segundo o porta-voz da Presidência da República, não faz campanha pela sua candidatura, mas assinala "que existe um cenário que se está delineando e (...) espera que a Argentina entenda a circunstância" ("Jornal do Brasil 28/8). Na prática, a compreensão argentina nunca se materializou e a discrição brasileira presumivelmente tem seus limites, sob pena de converter-se em desistência...
Por outro lado, há fatores exógenos -que seria impossível analisar aqui, mas que tampouco podem ser silenciados- que têm inegáveis reflexos sobre a política regional dos países do Cone Sul. Especificamente, o interesse dos EUA em vender armas para a América Latina e em tudo que tenda a retardar a consolidação do Mercosul.
Tais fatores têm adquirido importância crescente na medida em que o governo Menem -num contexto muito mais amplo do que a divergência em torno da composição do Conselho de Segurança- há muito optou pelo que já se tem chamado de "realismo periférico", pautando sua política internacional pela de Washington.
O envio de uma fragata para participar nas operações da Guerra do Golfo, a referência do chanceler argentino às "relações carnais" que unem seu país aos EUA e uma certa permeabilidade às idéias americanas sobre a Alca ilustram, entre outros episódios, tal orientação.
Washington retribuiu tanta fidelidade declarando a Argentina seu aliado especial na América do Sul. Em tal contexto, o Mercosul torna-se para o governo Menem um projeto econômico regional, sem desdobramentos políticos extracontinentais. Em contraste, o Brasil mantém maior autonomia de posições em relação a Washington e vê no Mercosul e na integração sul-americana, além de sua evidente relevância econômica, o referencial estratégico de sua política externa.
Há, pois, um enorme hiato entre as percepções internacionais dos dois governos. Tal divergência coloca, para o Brasil, um sério desafio político. Por outro lado, se o Mercosul for reduzido a um mero projeto econômico, sua importância se tornará bem menor para nós do que para a Argentina.

Luiz A.P. Souto Maior, 69, é embaixador aposentado do Ministério das Relações Exteriores. Foi embaixador do Brasil junto às Comunidades Européias (1977-84), no Peru (1984-87) e na Suécia (1987-90).

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