São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 1997
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Da necessidade dos símbolos pátrios

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Era um país imenso e futuroso, onde o rei e o povo tanto trabalhavam que, 800 anos depois de fundado, não tiveram tempo de ter uma bandeira e um hino nacional.
Tampouco bandeira e hino fizeram falta: rei e povo tanto prosperaram que passavam muito bem sem esses penduricalhos cívicos.
O único prejuízo era no setor diplomático e no campo esportivo, em que eventualmente foram criados irrelevantes problemas de protocolo e tabela.
No mais, dizia-se que era um país ditoso entre os mais ditosos, o rei amava o povo e o povo amava o rei -operação patriótica que todos cumpriam de bom grado e sem necessidade de leis e impostos.
Deu-se que o líder de um dos partidos nacionais -o Liberal, pois o outro era surpreendentemente o Conservador- decidiu colocar na ordem do dia do Parlamento uma emenda à Constituição Federal estabelecendo que o país deveria ter hino e bandeira "que fossem amados pelo povo e respeitados pelos povos de outras nações ao longo dos séculos".
Foram convocados os mais notáveis poetas e músicos da pátria para, em regime de consenso e comunhão de propósitos, chegar a um acordo a respeito do hino.
Quanto à bandeira, os conservadores exigiram que fosse feita ampla consulta ao eleitorado -coisa que não se fazia desde o tempo de Praxedes 2º- a fim de decidir quais seriam as cores e os símbolos do Pavilhão Nacional.
A questão emocionou todos os segmentos do país.
A Imprensa abriu imensos e generosos espaços à discussão do problema.
Os institutos de pesquisa investigaram exaustivamente as tendências da opinião pública. Constatou-se que, estabilizados os sentimentos gerais e depurados os naturais excessos emocionais de um e de outro lado, os anseios da nação se fixaram em dois históricos símbolos, já entranhados no coração e na mente do rei e do povo: o cágado e o pavão.
Gradualmente, os partidos deixaram de ser conservadores e liberais, passando naturalmente a se identificarem com o cágado e o pavão -o que tumultuou consideravelmente o tranquilo mercado das forças vivas da nacionalidade.
O rei, que por dever constitucional deveria se manter equidistante das disputas partidárias, presidindo a escolha com a isenção de um magistrado, pouco a pouco foi adotando uma postura a favor do pavão, contrariando a facção de seu poderoso primeiro-ministro, o messiânico Chanceler do Reino, que, além de optar pelo cágado, foi acusado pelo líder da oposição de ser o maior criador de cágados do país.
Quanto ao hino, a opinião pública cindiu-se em duas correntes antagônicas. Os conservadores, que progressivamente se tornavam cagadistas, preferiam ter um hino sem letra, enquanto os liberais, agora pavonistas, preferiam o contrário, ou seja, uma letra sem música.
Os debates tanto emocionaram o rei, o povo, o parlamento, a Imprensa e as classes produtoras, que foi proposto e realizado um plebiscito -e somente para a realização do plebiscito gastou-se metade do orçamento nacional, sendo que a outra metade foi gasta na apuração do mesmo.
Ao final da consulta às bases, o país viu exaurida a sua balança comercial, viu-se endividado na sua balança externa e pauperizado em sua dívida interna.
Pior foi o resultado. Sendo um povo notável pela excelência de seus matemáticos -que haviam até inventado um esporte popular baseado no sorteio de dezenas, centenas e milhares invertidos e cercados pelos sete lados-, o resultado do plebiscito foi um rigoroso empate: metade da nação era a favor do cágado na bandeira e -por espantosa coincidência- a outra metade era a favor do pavão.
Quanto ao hino, também metade preferia a letra sem a música e a outra metade, por simetria ou coerência ideológica, preferia a música sem a letra. Somente os comunistas e radicais dos partidos alternativos (poucos) optaram por ser contra as soluções apontadas e ameaçaram promover uma Greve Geral e Ecumênica.
O rei ficou assustado. Sabia o que era uma greve geral, mas nem ele, nem o Chanceler do Reino, nem a oposição tinham qualquer idéia a respeito do que seria uma greve ecumênica. Na dúvida e antes que as coisas tomassem rumo inesperado e fora do controle, o rei usou do que dispunha o parágrafo único do artigo 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e Permanentes.
Decidiu que o símbolo nacional seria mesmo o cágado, e o hino não teria nem música nem letra, pois, havendo o cágado, um símbolo nacional seria excedente.
A Imprensa e o Parlamento louvaram a sabedoria do rei e foram decretados três dias de festas que duraram quatro noites. E na última noite da festa, os partidários do pavão, tendo à frente o temível Raul, o Implacável, mataram 5.390.722 cágados de diferentes tamanhos e serventias.
Ao tomar conhecimento do cagadocídio, por intermédio de pérfida intriga de Alberto, o Indomável, o rei sentiu-se ultrajado e abdicou do trono, subindo ao poder seu filho bastardo, Oscar 3º, o Desditoso. Tão desditoso que, ao nascer, tinhas as pernas de cágado e a cauda aberta e inútil de um pavão.

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