São Paulo, sábado, 30 de agosto de 1997
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Nevoeiro sobre Casablanca

RUBENS RICUPERO

"O problema de Humphrey Bogart é que ele acredita que é Humphrey Bogart", comentou uma vez seu amigo Dave Chasen. Nascido em berço de ouro, atraído por iates e outros brinquedos dispendiosos, o anti-herói de Casablanca acabou por crer que era mesmo um "durão" na tela e na vida. O personagem tinha tomado conta do ator, que na realidade não era de comprar briga.
É esse o perigo dos modelos, individuais ou coletivos. Facilmente se tenta vestir uma fantasia que nos sobra de todos os lados. Dizia, por isso, um cientista inglês que as teorias só podem ser uma de duas coisas: ou são verdadeiras ou são falsas. Os modelos, contudo, têm uma terceira alternativa: podem ser certos, mas irrelevantes.
Acontece que, em matéria social, as teorias, mesmo corretas, são abstratas demais. Para se deixar convencer, as pessoas precisam ver a teoria realizada na prática, isto é, precisam de um modelo. Não importa se os modelos decepcionam. Eminentemente descartáveis, como tudo hoje em dia, isso em nada diminui a fé na moda do momento: não eterna, mas infinita enquanto dura.
Assim, o século 20 tem sido um cemitério de modelos. Do lado das utopias totalitárias, o fascismo capaz de fazer os trens cumprirem horário, o nazismo construtor de auto-estradas e vencedor do desemprego, o stalinismo da "edificação do socialismo num só país", o comunismo de Khruschov prometendo enterrar os capitalistas, o maoísmo das comunas e da Revolução Cultural, sem falar de aberrações mais extravagantes como o "modelo albanês", tão popular em certos meios brasileiros dos anos 80...
No campo das economias mais ou menos de mercado, pondo de lado o "New Deal" de Roosevelt, quem não se lembra do "desafio japonês", do "milagre italiano", da "economia social de mercado" alemã, da social-democracia sueca, da "economia da oferta" de Reagan, da revolução thatcheriana, dos "milagres" espanhol, mexicano e até brasileiro?
Ainda quando genuínos e não blefes, como alguns dos citados, os modelos devem ser consumidos no local, como o peixe fresco e as jaboticabas. Quando se tenta exportá-los, quase sempre se estragam. É difícil transportá-los a outros solos, ou porque faltam os elementos responsáveis pelo êxito original -tamanho de mercado, recursos naturais, infra-estrutura- ou porque as instituições, a história, a cultura são completamente diferentes.
O caso americano é exemplar nesse sentido. Maior laboratório econômico e social do século, a sociedade em perpétua reinvenção de si própria, os Estados Unidos são, ao mesmo tempo, o país mais imitado e mais inimitável do mundo. Não se trata apenas das superlativas vantagens materiais em riquezas extraordinárias e da escala gigantesca do mercado. Outros -poucos, é verdade- também dispõem de tamanho e recursos.
O que faz a "excepcionalidade americana", como explica Seymour Lipset no livro do mesmo nome, é a existência de um credo partilhado por quase todos os cidadãos. Um conjunto de crenças e valores sobre a natureza de uma boa sociedade, em grande parte derivados da Revolução da Independência, que inclui o culto da liberdade, a igualdade de oportunidades (não de resultados), o individualismo, a hostilidade à economia estatal, a aceitação de competição externa, a "ação afirmativa" para promover a mudança social etc.
Esses valores inspiraram as instituições políticas e o sistema jurídico e tornaram possível o desenvolvimento da economia. Não dá certo importar os resultados sem reproduzir-lhes as causas. O presidencialismo, por exemplo, virou uma caricatura na América Latina, da mesma forma que o parlamentarismo britânico nunca funcionou tão bem na Itália ou na França por não existirem os valores subjacentes.
A fim de ilustrar como as atitudes dos americanos diferem das de outros povos, Lipset cita uma pesquisa recente. Consultados sobre se o governo deveria reduzir a diferença de renda entre ricos e pobres, apenas 38% dos americanos concordaram, contra 65% dos ingleses, 66% dos alemães e 80% dos italianos.
Vê-se que há aí uma clara escolha de alguns valores, de preferência a outros. Explicada pela história, essa escolha da sociedade explica, por sua vez, por que certas características do atual modelo americano, como a concorrência exacerbada ou a insegurança do emprego, são mais toleráveis nos EUA do que nos demais países.
Em razão de condições culturais ou históricas distintas, outros povos preferirão optar por valores alternativos. Os escandinavos, por exemplo, sempre privilegiaram o máximo de igualitarismo; os japoneses, o interesse comunitário e o emprego vitalício; os alemães, escaldados pelas hiperinflações do passado, o consenso social e a estabilidade monetária; os franceses, o Estado forte de Colbert e Napoleão e os valores da Revolução de 1789, e assim por diante.
O desafio de cada povo é, portanto, conciliar seus valores e problemas com as exigências globais válidas para todos: equilíbrio macroeconômico, eficiência, competitividade. Depende de cada sociedade dar peso maior ou menor a um ou outro desses elementos, consciente de que toda escolha envolve benefícios e custos.
Faltando isso, as teorias liberais novas ou velhas e os modelos importados irão aumentar o cemitério dos fracassados. Já afirmavam em seu tempo os existencialistas que um projeto, pessoal ou coletivo, tem de ser autêntico, fiel ao que é, e não ao que pretende ser.
James Cagney dizia que, na hora de enfrentar uma briga, Bogart "era tão duro como Shirley Temple". Os que sabemos de cor as cenas entre Humphrey Bogart e Ingrid Bergman podemos não gostar, mas, sem autenticidade, modelos e projetos terão a mesma consistência maravilhosa do nevoeiro do aeroporto de Casablanca quando se acendem as luzes do cinema.

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