São Paulo, sábado, 30 de agosto de 1997
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Há cem anos, nascia minha mãe

LUCIANO MENDES DE ALMEIDA

A relação entre mãe e filhos é, sem dúvida, muito íntima para ser descrita. A 12/1/73 falecia Emília, minha querida mãe. Comemoramos no dia 27/8 o centenário de seu nascimento, com a celebração da eucaristia na paróquia da Trindade, no Rio de Janeiro, onde viveu. Há muito que agradecer a Deus.
As manifestações de estima e apreço foram tão comoventes que sinto o dever de externar aos amigos, em meu nome e da família, a sincera gratidão, recordando alguns fatos de sua vida. Vale como homenagem a todas as mães. Minha mãe, depois de dar à luz Teresinha, que sobreviveu apenas algumas horas, teve, apesar das apreensões médicas, sete filhos. A meu pai, Cândido, a quem muito amava, e a nós dedicou seu coração, sabendo adaptar-se ao jeito, qualidades e fraquezas de cada um de nós.
Entre os dons que dela recebemos, desejo lembrar a sua fé e confiança em Deus. Quando pequenos, reunia-nos de noite, ao pé da cama, para rezar conosco. Abria, então, o livro dos santos, "Na Luz Perpétua", e ia nos ensinando os exemplos desses heróis da fé. Participava diariamente da eucaristia.
Formou-nos, assim, no amor e respeito a Deus. Estendeu seu zelo para além da família, assumindo, com alegria, por quase 50 anos, o ensino religioso nas escolas públicas do bairro e no Colégio Juruena. Após o falecimento de meu pai, dedicou-se, também, à formação de adultos na paróquia.
Sua misteriosa força vinha da oração. Tinha se submetido a uma delicada operação para extrair um tumor no cérebro. Durante a convalescença viajei para visitá-la. Cheguei à casa de madrugada e, sem bater à porta, entrei no quarto. Foi quando a vi de joelhos, com os braços abertos, rezando o rosário. "Mãe", disse-lhe, "por favor, descanse." Ela me olhou e, como que se desculpando, respondeu: "Meu filho, não é por mim que estou rezando, é pelos outros". Mostrava, assim, que, sendo para os outros, não havia limite na doação.
Em Deus encontrava as energias para devotar-se não só à família, mas às necessidades espirituais e materiais do próximo. Subia a encosta da favela e entrava em contato com a miséria, de modo tão discreto que, muitas vezes, nem percebíamos. Isso explica sua opção por uma vida sóbria e austera, privando-se de comprar algo para si, de modo a poder repartir mais com os pobres.
Desejava muito ter um filho sacerdote, mas evitou exercer qualquer influência em minha decisão. Quando lhe comuniquei a intenção de servir a Deus e fazer-me jesuíta, alegrou-se, mas acrescentou: "Meu filho, se essa é sua vocação, seja fiel e generoso. Mas, se você perceber que seu caminho é outro, volte para casa e lembre-se de que sou sua mãe".
A doença progrediu e ela teve que se submeter a nova operação, vindo, então, a perder a consciência e a comunicação, por oito longo meses, até falecer.
Antes de entrar no centro cirúrgico, olhou-me com afeto, rezou, pediu que a abençoasse e deixou para os filhos, em testamento, a bela mensagem: "Permaneçam sempre unidos". Lembrei-me de Jesus Cristo que, entregando sua vida, pediu ao Pai que realizasse a união entre nós. Minha mãe, Emília, ao lado de Maria, mãe e senhora nossa, interceda por todos nós e nos conceda imitá-la na doação ao próximo e na total confiança em Deus.

D. Luciano Mendes de Almeida escreve aos sábados nesta coluna.

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