São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O teatro da criação

MIRIAM CHNAIDERMAN

Todos sabemos o quanto José Celso Martinez Corrêa é personagem polêmico em nosso Brasil. E sempre o foi. Ainda hoje consegue espantar senhoras e senhores respeitáveis em Araraquara, ou seja lá onde for, recolocando em cena questões que sempre o nortearam. Também é lugar-comum escutarmos que o momento de realização do Oficina teria acontecido antes do exílio, que ocorre após o Ato Institucional nº 5, depois de 1969, e que depois Zé Celso teria "decaído" como criador. Volta e meia surgem frases saudosistas da montagem de "O Rei da Vela", "Roda Viva", "Galileu, Galilei". O livro "Uma Pulsão Espetacular", de Mauro Meiches (psicanalista, mas que fez sua primeira formação em teatro), surpreende e lança uma nova luz sobre o percurso do Oficina ao Uzyna-Ozona. Sua leitura é original e obriga a repensar o trabalho de Zé Celso. Mas não só. Contribui ao apontar um possível uso fecundo da psicanálise para pensar fatos de nossa cultura. O uso que é feito da noção de sublimação na sua relação com a teoria freudiana da pulsão vem contribuir para estudos que não só o do grupo liderado por Zé Celso.
Já no início do estudo é apontada a discrepância entre a urgência constante do trabalho das pulsões e a sua articulação em um sistema simbólico, do qual faria parte a obra-de-arte. O grupo de Zé Celso deixaria claro um curto-circuito produzido pelos impulsos desejantes que explodem, pipocam, dando índices de projetos que ocorrem por "surgimentos repentinos", em instantes fugazes. Então, no percurso que se traça a partir de índices de instantes, é possível desvelar um movimento que vai no sentido inverso ao da sublimação, em direção ao mítico, ao não-simbolizável, à origem da origem. Uma leitura temporal do trabalho de criação.
Partindo da montagem de "Galileu, Galilei", Meiches desvela projetos que vieram a público pontualmente. Exemplo desse projeto é a adaptação de "As Bacantes", "devoração antropofágica das raízes gregas", e como é mostrado. Ou seja, determinado pela contingência. "As Bacantes" leva a ressignificar todo o trabalho do Uzyna-Ozona. A "contingência" que marca o seu vir a público mostra "o horror que causa apenas imaginar, nestas horas febris, o que seria continuar indefinidamente uma espera". A pontualidade do evento é tranquilizadora no processo infinito de criação. Na "Tragycomediorgya" que é "As Bacantes", explicita-se toda a discussão entre teatro e "te-ato", representação e presentação.
A fugacidade é consequência da busca do transe, instante privilegiado de um ato sem representação. O "te-ato" é transcendência do teatro e do ato. Guiado por um desejo mítico de ir além da linguagem, ao antes de tudo, busca-se um eterno presente.
Será que todo movimento que é provocado pela urgência do trabalho pulsional, não dando tempo para a realização completa de uma obra, pode ser considerado arte, enquanto rasgo no simbólico e busca de criação de novos circuitos? Como pensar tudo isso agora que os espetáculos de Zé Celso permanecem em cartaz? Como pensar a contingência da criação? Ficam as perguntas e a vontade de continuar refletindo sobre tudo isso...

Texto Anterior: Livro sobre Cazuza lidera lista
Próximo Texto: FICÇÃO; NÃO-FICÇÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.