São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 1997
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A abobrinha como novo símbolo do real

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro foi o frango, depois o iogurte e, finalmente, a dentadura. Mas o verdadeiro símbolo do real deveria ser a abobrinha plantada e distribuída pelo Palácio do Planalto.
Longe de mim ficar discutindo as frases do presidente. Os brasileiros são caipiras? É melhor conservar os dentes artificiais ou disseminar dentaduras do Oiapoque ao Chuí?
Minha promessa de não entrar nunca nessas polêmicas transcendentais continua de pé. Mas, de uma certa maneira, vou sucumbir à tentação e erguer uma voz isolada em defesa do presidente.
Ele tem direito às suas abobrinhas, como todos temos, como tiveram nossos pais e nossos avós. Não há nenhum compromisso em ser científico todo o tempo, de só falar em pesquisas de campo, quadros comparativos.
"Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil." "O que o país precisa, na verdade, é de um gerente." Quem não se lembra de ter ouvido essas frases na infância?
O presidente tem o direito de continuar uma tradição, mesmo porque, se alguém tem chance de emplacar uma frase no imaginário popular, esse alguém é ele, que fala para dezenas de microfones e é esperado avidamente por dezenas de críticos, querendo inserir suas frases no contexto, tentando provar que, no fundo, é tudo o que seus adversários dizem dele.
Cada frase dessas passa no liquidificador, mas, quem sabe, talvez ele esteja apenas querendo conversar mais livremente, prazer quase impossível no seu cargo.
Nos lapsos do presidente e de seu ministro Sérgio Motta há, no entanto, uma presença crescente da metáfora sexual.
Motta deu a partida com a masturbação sociológica. O presidente avançou um pouco mais, mencionando as relações carnais, e Motta arrematou com as relações incestuosas". É uma verdadeira escalada que arranca do ato solitário, passa pelo amor de dois países adultos e termina quebrando o tabu do incesto.
Onde podem chegar? Do ponto de vista subversivo, o incesto é a última estação. Mas restam ainda as inúmeras variações do ato amoroso, que podem aparecer em conjunturas políticas apropriadas para a metáfora.
A sodomia, por exemplo. É o tipo de imagem que pode surgir ao final de um acordo político em que uma das partes desconfia que o outro quer se aproveitar dela. Basta um pouco de emoção e os malditos microfones a provocando impiedosamente.
Certos candidatos que não se decidem e não saem de cima, que ocupam um espaço sem preenchê-lo, estão sempre no limite de serem classificados com a expressão popular correspondente.
Há ainda espaço para relações orais, ainda ausentes dos lapsos dos líderes políticos. A maneira como o país recebe essa chuva de imagens eróticas é das mais sábias. As pessoas se esquecem facilmente do débil conteúdo político das frases e se fixam apenas naquelas palavras.
No Congresso, houve uma tentativa de definir relações incestuosas e a definição se limitou ao amor entre irmãos. Não se falaram em outras combinações, como mãe e filho por exemplo.
Mas o inverso, às vezes, não é verdadeiro. De todas as possibilidades de masturbação, a sociológica não é das mais emocionantes. Argentina e Estados Unidos em relações carnais não valem um filme erótico de fim de madrugada. Relações incestuosas entre o Congresso e Palácio do Planalto não têm a tensão e a ambiguidade de um filme de Luchino Visconti.
Parece que a política tenta sorver na fonte do sexo um pouco de sua energia vital. Mas acaba ameaçada por um perigoso vírus: o do bocejo. Se possível, queremos mais imagens picantes toda semana.
Mas é legítimo também ansiar por um recheio político mais emocionante. A eletricidade do sexo pede canais mais delicados, momentos mais românticos. Por mais ousadas as imagens, certos cenários não passam de papais-e-mamães, prosaicas posições missionárias num mundo que se move velozmente para a chegada do século 21. Será que vamos rompê-lo com um pouco mais de tesão no futuro?
A integração da América Latina, os limites de um projeto nacional no ano em que vão inaugurar aqui o telefone internacional, e, por dezenas de satélites, se vai falar de qualquer parte do mundo para qualquer parte do mundo, tudo isso daria melhores cenários políticos para nossas metáforas sexuais. Sobretudo agora que nos preparamos para a dança da garrafa, nas eleições de 98.

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