São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 1997
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William Faulkner foi escritor rockabilly

DAVID DREW ZINGG
EM SAMPA

"As ferramentas de que preciso para meu trabalho são papel, tabaco, comida e um pouco de uísque."
William Faulkner

Semana que vem, no dia 25 de setembro, é o 100º aniversário do nascimento de William Faulkner.
Em sua cidade natal -Oxford, Mississippi-, continuam brigando sobre ele, como se ainda estivesse vivo. Na quarta que vem vão dedicar uma estátua ao escritor ganhador do Prêmio Nobel, e nem todo mundo está feliz com isso.
Vejamos, por exemplo, os casos de Jimmy Faulkner e Chester McLarty. Chester era o médico de Faulkner, que tratou o escritor de seu alcoolismo adiantado, enquanto Jimmy era seu sobrinho favorito.
Ambos se assemelham fisicamente ao romancista do sul dos EUA e ambos ostentam os bigodes brancos faulknerianos, típicos de cavalheiro da zona rural.
Quando o famoso escritor morreu de um ataque cardíaco induzido por bourbon, no dia 6 de julho de 1962, foi Jimmy quem acordou Chester, com um telefonema de madrugada, para dar a notícia: "O irmão William morreu".
Agora, 35 anos mais tarde, os dois homens (e muitos de seus vizinhos em Oxford) estão brigando sobre qual a melhor maneira de rememorar o escritor mundialmente famoso que andou, bebeu, escreveu e refletiu sombriamente entre eles.
A estátua de Faulkner será inaugurada na semana que vem, sim, mas parece estar desencadeando uma nova versão da Guerra Civil norte-americana entre amigos e parentes.
Jimmy, falando (segundo ele próprio) em nome da família, vê o monumento como uma indesejável invasão de privacidade. O dr. Chester foi aquele que concebeu a idéia da estátua, para homenagear os cem anos do nascimento de Faulkner.
Jimmy passou a opor-se ao projeto depois que a prefeitura cortou uma magnólia na praça central de Oxford para dar lugar à estátua de bronze.
Chester fizera questão daquele lugar exato. Jimmy declarou numa ruidosa reunião de protesto promovida na Câmara Municipal de Oxford que derrubar aquele símbolo perfumado da cultura sulista é o tipo de coisa que um Snope faria.
Se você já leu as complexas sagas de incesto e paixão escritas por Faulkner, situadas no condado de Yoknapatawpha, de sua própria invenção, vai saber que os Snopes são um clã fictício de oportunistas trapaceiros, aproveitadores, que fariam qualquer coisa por dinheiro.
Chamar alguém de Snope pode não levar você a ganhar um soco no olho na São Paulo literária, mas em Oxford, Mississippi, é mais ou menos a pior coisa que se pode dizer de alguém sem tocar nas origens de sua mãe.
Os Snopes tinham muito em comum com seu nome. É difícil pensar em qualquer coisa boa na língua inglesa que comece com "sn".
Vejamos: snake (cobra; pessoa traiçoeira); snort (bufar; cheirar droga); sneak (dedo-duro); snarl (grunhir; embaraçar; engarrafar, o trânsito); sneer (desprezar; rir com desdém); snide (sarcástico de maneira pejorativa, desagradável; inútil, inferior; pessoa desprezível); snaggletooth (dente que se projeta para a frente).
William Faulkner sabia muito sobre nomes. Ele chegou até a editar o seu. Como você sabe, acrescentou um "u" a seu sobrenome quando começou a tentar agir como um homem de letras. S
Houve uma época, quando retornou a Oxford, Mississippi, depois de uma viagem à Europa durante a guerra, quando as pessoas se referiam a Faulkner, às escondidas, como "Count no Count". É pura zombaria sulista, equivalendo a dizer que ele não valia nadica de nada. Tio Dave passou muito tempo no Estado do Mississippi. Durante a 2ª Guerra Mundial, aprendeu a pilotar numa base da Força Aérea americana em Biloxi, Mississippi.
Na década de 50, agitada por distúrbios raciais, passou muito tempo cobrindo os conflitos entre brancos e negros na região agrícola de terra rica situada em volta da cidade natal de Faulkner. Depois da morte do grande escritor, eu ia frequentemente a Oxford para visitar um velho amigo fotógrafo.
Nunca voltei a Oxford sem tirar tempo para ler uma placa indicativa histórica instalada no centro da cidade.
A placa havia sido colocada no local pelas senhoras da cidade, com intuito de serem prestativas, para indicar o caminho aos visitantes desejosos de conhecer o cemitério de Oxford e os cidadãos distintos que ali repousavam. Ainda guardo as anotações que fiz:
"Aqui estão enterrados L.Q.C. Lamar, estadista; A.B. Longstreet, escritor, educador; William Delay, veterano de três guerras; Sarah Isom, primeira mulher a lecionar numa universidade sulista; e (guardando o melhor para o fim) I.D. Isom, primeiro colono branco a estabelecer residência neste condado."
Não era que houvessem realmente passado por cima de William Faulkner -era apenas que Oxford, ao que parecia, tinha outras prioridades.
Uma simpática senhora da sociedade histórica me explicou ao telefone que o escritor tinha uma placa histórica só sua, muito próxima a seu túmulo.
Meu amigo fotógrafo, Bern Keating, também era escritor. Ele possuía um senso refinado de ironia sulista. A omissão do nome de Faulkner na placa histórica despertou sua curiosidade.
Ele ligou para a simpática senhora da sociedade histórica.
"A senhora não acharia", perguntou Bern educadamente ao telefone, "que, ao lado da primeira mulher a lecionar numa faculdade sulista e do primeiro colono branco a estabelecer residência neste condado, seria possível encontrar lugar para o primeiro branco deste condado a ser laureado com o Prêmio Nobel?".
Ela nem parou para pensar. "É uma ótima sugestão", respondeu, em tom simpático. "Essa idéia nunca nos tinha ocorrido."
É difícil compreender a mentalidade do Mississippi. Parece que as pessoas de lá não entendem Faulkner muito bem, assim como também não parecem apreciar outro filho do Mississippi que nasceu a apenas 40 km de distância, em Tupelo: Elvis Presley.
Os dois nasceram no mesmo pedacinho de solo do tamanho de um selo de correio, como Faulkner descrevia seu cenário fictício. Mas, nas cabeças de alguns, aquele selinho de correio não era grande o suficiente para conter os dois.
Alguns anos atrás um professor de inglês na "Ole Miss" -a Universidade do Mississippi- teve a audácia de organizar uma conferência acadêmica sobre Elvis na cidade natal de William Faulkner.
Parece que o tweed e o lamê dourado não combinaram muito bem e causaram constrangimento à universidade, que resolveu puxar o tapete de Elvis. Parece que o músico rebolador, aquele que sabia mexer sua pelve tão bem, era um pouquinho apenas "déclassé" demais para a Ole Miss.
O que começou como novidade acadêmica degenerou para uma disputa de conotações: aristocracia versus caipiras sulistas ignorantes, conhecimento livresco versus rebolado de quadris, "O Som e a Fúria" versus "A Hunka-Hunka Burnin' Love".
Foram os encontros acadêmicos mais inusitados jamais vistos. As conferências atraíram um misto estranhíssimo de acadêmicos e exóticos fãs de Elvis, liderados por meu favorito pessoal inconteste, o famoso cover mexicano do Elvis, o sr. El Vez.
Um respeitado historiador sulista que achou o encontro "instigante" se perguntou em voz alta por que ninguém jamais afirmou ter visto Faulkner ali pertinho, no McDonald's da esquina.
Quando estourou a notícia de que Elvis Herselvis (Elvis Ela Mesma), uma cover lésbica de San Francisco, iria se apresentar, a reação foi como a dos velhos pregadores fundamentalistas que condenavam o próprio Elvis.
A fundação Elvis e o burô de turismo de Tupelo retiraram seu patrocínio financeiro.
O jornal estudantil da universidade resolveu aderir à batalha, apresentando uma lista de dez razões pelas quais Faulkner foi melhor do que Elvis.
Acho que quem acertou foi Bern, aquele meu amigo do Mississippi.
Ele achou que ambos foram, em essência, artistas "outsiders" autodidatas, que revolucionaram seus respectivos campos de trabalho e, durante esse processo, se mantiveram profundamente sulistas.
"Penso em Faulkner como um escritor rockabilly", dizia Bern.

Tradução de Clara Allain

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