São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
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Contista russo retrata época rica e contraditória

IRINEU FRANCO PERPETUO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Seis contos inéditos de um escritor russo desconhecido, enigmático e instigante formam o quarto volume da Coleção Leste, lançado recentemente pela Editora 34.
Depois dos húngaros István Orkény e Dezso Kosztolányi e do tcheco Karel Tchápek, é a vez de "O Marcador de Página", de Sigismund Krzyzanowski -que, apesar do sobrenome polonês é, até onde se sabe, russo.
Na orelha do livro, o coordenador da Coleção Leste, Nelson Ascher, diz que as informações sobre ele são "escassas, imprecisas, não necessariamente confiáveis e difíceis de obter".
Ausente das obras de referência, Krzyzanowski, ao que parece, nasceu no final do século passado e morreu em meados do nosso. Não sobram fotos ou retratos seus, e quase nada de seu trabalho foi publicado enquanto viveu.
"O Marcador de Página" é o nome de um dos seis contos do livro. Datados entre 1926 e 1939, eles têm sabor muito característico da União Soviética dos anos 20.
Foi uma época rica e contraditória, em que artistas de vanguarda, como o poeta Vladimir Maiakóvski e o fotógrafo Aleksandr Ródtchenko, apoiavam a insurreição vitoriosa de 1917, querendo levar para as artes a revolução que se operara na sociedade.
E, embora enfrentassem dificuldades com a burocracia governamental, voltada para a arte tradicional, que não hesitava em tachá-los de "formalistas" e "incompreensíveis para as massas", ainda conseguiam algum espaço -até que, em 1934, o "realismo socialista" tornou-se obrigatório.
Com sua ficção fantástica, mas com pé no cotidiano, Krzyzanowski reflete estes tempos atribulados, soando contemporâneo do escritor satírico Mikhail Zóschenko e do grupo nonsense de Leningrado (atual São Petersburgo) auto-intitulado "oberiuti".
Apontados por Boris Schnaiderman, em "Os Escombros e o Mito", como percursores do teatro do absurdo, os "oberiuti" (de "Oberiu - Obedienie realnovo iskusstva", ou "Sociedade da Arte Real") bem que poderiam ter subscrito a frase "em primeiro lugar, é preciso riscar fora a verdade, ninguém precisa dela", que aparece na originalíssima parábola "Dentro da Pupila" (1927), em um trecho no qual Krzyzanowski parece enunciar alguns de seus princípios estéticos.
Se os contos de "O Marcador de Página" nos dão pistas sobre as idéias de seu autor, também é possível reconstruir sua biografia.
É fácil imaginar os burocratas cruelmente satirizados por Mikhail Bulgakov em "O Mestre e Margarida" rejeitando os manuscritos de Krzyzanowski.
E é justamente esta problemática que aparece no conto que dá título ao livro, em que um escritor, em uma praça de Moscou, começa a contar para os passantes suas narrativas, infalivelmente desprezadas pelas editoras.
Histórias delirantes, como a da Torre Eiffel, que, entediada, resolve se mudar de Paris, misturam-se à problemática da época, como a transformação de um marceneiro em tecnocrata do Partido.
Mas a mera enunciação dos temas está muito longe de dar conta da maneira engenhosa e inesperada como Krzyzanowski desenvolve seus episódios.
Se é melancólico que Krzyzanowski só tenha sido descoberto após o estilhaçamento dos sonhos de sua era, não deixa de ser irônico que ele venha a ser apreciado em um período tão ou mais absurdo que aquele em que viveu.
Veja-se, por exemplo, a atualidade de "O carvão amarelo", de 1939, em que um cientista resolve a crise provocada pelo esgotamento dos combustíveis naturais ao descobrir como transformar a raiva em energia.

Livro: O Marcador de Página
Autor: Sigismund Krzyzanowski
Lançamento: Editora 34
Quanto: R$ 16,00 (158 páginas)

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