São Paulo, sábado, 20 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Libelu era trotskismo com rock e fuminho

MATINAS SUZUKI JR.
DO CONSELHO EDITORIAL

Para a história, a geração dos anos 70 ficará à sombra da geração dos 60.
Mas quem viveu os primeiros passos da luta pela chamada abertura sabe que houve uma rica experiência no interior do renascimento do movimento estudantil, em São Paulo, a partir de 74.
Estudante da Faculdade de Filosofia da USP e da ECA, participei do braço cultural da Liberdade e Luta, conhecida com o delicioso nome de Libelu -um curioso e original amálgama político-comportamental, em que o trotskismo convivia com o rock, com o fuminho e com as meninas do pós-queima-dos-sutiãs.
Parte da Libelu -porque ela também tinha a sua vertente moralista- não só divergia politicamente dos stalinistas ou dos maoístas, ou ainda da nascente social-democracia, que seriam os tucanos do movimento estudantil, mas também divergia radicalmente da maneira de viver da esquerda tradicional.
Três pessoas, mais velhas do que nós, foram importantes para a minha geração:
* Júlio César Montenegro, um cearense que fez o ITA, último editor de cultura do semanário "Opinião", do Fernando Gasparian. Polemista em tempo integral, provocador, questionador dos mitos sagrados da esquerda, nos levou à experiência do jornal "O Beijo".
Em um encontro da imprensa alternativa, dos quais éramos sempre excluídos, um orador repetia insistentemente "todos nós que lutamos pelas liberdades democráticas, todos nós que lutamos pelas liberdades democráticas, todos nós que lutamos pelas liberdades democráticas...".
Montenegro pediu um aparte e falou: "Companheiro, você poderia fazer o favor de, em vez dizer todos nós que lutamos pelas liberdades democráticas, dizer todos nós, menos o Júlio César Montenegro, que lutamos pelas liberdades democráticas?".
Ele quase foi linchado pela esquerda presente.
* Fernandinho Mesquita, de longe a pessoa mais brilhante, a que melhor escrevia e a que tinha as idéias mais interessantes.
Foi terrorista, preso, torturado, como poderia ter sido ladrão, traficante etc.
Para ele, a esquerda já havia acabado, estava com um pé no anarquismo, andava em um Fusca cujo acelerador era um barbante que ele puxava com a mão e tinha uma exigência com o absoluto que a vida não poderia lhe prover.
A junção da vocação suicida para fazer qualquer coisa com a força de uma lógica própria, livre e sofisticada fizeram dele o nosso guru errante.
Foi o promotor e o teórico da grafitagem pela cidade, escreveu os melhores textos de "Cine Olho" e "Beijo" e, onde os jornalistas em greve pichavam "não compre jornais", ele pichava embaixo: "Minta você mesmo".
* Gilberto Vasconcellos, à época um lucaksiano-freudiano formado pela teoria da dependência e pelas idéias "fora do lugar" de Roberto Schwarz, um jovem intelectual antiacadêmico cativante, carismático, capaz de atrair para o seu círculo muitas das boas cabeças do período.
O que nós fazíamos? Frequentávamos o Riviera, o Ponto 4 (depois o Bar da Terra, o primeiro posto avançado na Vila Madalena), íamos ao cineclube da GV (onde uma dupla de Barretos, o Zaga de Lucca e o Hugo "Terceira Via" Mader nos apresentou todo o Godard e todo o Julinho Bressane), rolava muito Stones nas festas sempre com cerveja, líamos Adorno, Walter Benjamin, Barthes, Foucault, Bataille, Cortázar, Bandeira e Murilo Mendes -alguns, como o Rodrigo Naves, o melhor orador da Libelu, liam Sartre-, passávamos Carnaval na Bahia, show de Gil e Caetano eram obrigatórios, assistir às aulas do Davi Arrigucci Jr. também, nosso coração batia pelos surrealistas, nossa mestra era Marilena Chauí, anulávamos os nossos votos, éramos leitores de Paulo Francis, nosso padrão de jornalismo era o "Le Monde" e tomamos um porre quando, finalmente, o Corinthians foi campeão.
À nossa maneira, nós tivemos o nosso "C'Eravamo Tanto Amati" -que, aliás, é de 1975.

Texto Anterior: Veja a programação
Próximo Texto: Saiba o que aconteceu em 77
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.